“Reduzir desigualdade de aprendizagem tem que ser prioridade”

Para ex-secretário de Educação de SP, debate sobre escola fechada está ‘meio fora de lugar’

A agenda da educação pública para o pós-pandemia e os próximos anos deve se concentrar em reduzir as desigualdades de aprendizagem entre os alunos, característica histórica do ensino brasileiro e acentuada desde março com o fechamento das escolas na maior parte do país, opina Alexandre Schneider, presidente do Instituto Singularidades e ex-secretário de Educação da cidade de São Paulo.

O primeiro passo nessa direção é superar a atual dicotomia entre abrir ou não as escolas, uma discussão “meio fora do lugar”, avalia Schneider. “Ninguém quer que as crianças, as suas famílias e os professores corram riscos. Por outro lado, ninguém pode ser a favor de escola fechada para sempre”, disse ao Valor.

Para avançar no debate, ele defende transparência nos planos de retomada. “É preciso colocar todo mundo na mesa, sindicatos, professores e pais, fazer um plano agressivo de comunicação, tomar as medidas de infraestrutura necessárias […] e deixar tudo isso claro para a população”, disse.

É uma tarefa que cabe sobretudo a Estados e municípios, estes com dificuldade adicional porque 2021 será o primeiro ano de gestão para a boa parte dos prefeitos. Ausente na pandemia e em outros temas cruciais, como o novo Fundeb, o Ministério da Educação (MEC), já em seu quarto ministro sob o governo Bolsonaro, deveria dar subsídios técnicos e financeiros para as redes mais frágeis. “Ou seja, o MEC deveria ser o maestro desse processo, respeitando as individualidades locais”, ressalta ele, que também é pesquisador do Centro de Estudos em Política e Economia do Setor Público (Cepesp/FGV).

Também caberia ao governo federal estimular os gestores educacionais, a partir de novos indicadores, a trabalhar para atender a todos os alunos – e não entregar o mesmo tipo de conteúdo e ensino, a despeito das diferenças socioeconômicas entre os estudantes. Apesar da falta de ação do MEC nos dois últimos anos, Schneider vê alguma chance de melhora

, motivada pelas proximidade das próximas eleições. ”Olhando para os dois anos que se passaram, ninguém deve acreditar que alguma coisa vá mudar […] Mas talvez o MEC consiga se reconciliar com a agenda da educação”, afirma.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista:

Valor: Com o sr. avalia o debate sobre a volta às aulas presenciais?

Alexandre Schneider: Sinto que a discussão no Brasil está meio fora do lugar. Hoje a gente tem aqueles que dizem que é hora de voltar e os partidários do “não voltamos até a vacina”. Mas, muito provavelmente, não estaremos todos imunizados até o fim do ano que vem. Isso leva para a educação a necessidade de discutir de um outro lugar, que é o de vamos voltar às aulas e como voltar. Certamente ninguém quer que as crianças, as suas famílias e os professores corram riscos. Por outro lado, ninguém pode ser a favor de uma escola fechada para sempre.

Valor: E como deslocar o debate para outro lugar?

Schneider: As pessoas estão com medo, passamos o ano dizendo para elas ficarem em casa e agora a gente tem uma possível segunda onda que, segundo os especialistas, vai quebrar na praia em janeiro. Segundo, há uma baixa confiança das pessoas em governos, isso é histórico e vem se ampliando com o tempo. Então é preciso colocar todo mundo na mesa, sindicatos, professores e pais, fazer um plano agressivo de comunicação, tomar as medidas de infraestrutura necessárias, desde melhoria física dos prédios até comunicação visual dentro da escola, definir o número de alunos por sala e deixar tudo isso claro para a população.

Valor: Isso é tarefa só dos governos estaduais e municipais?

Schneider: O trabalho deveria ser de cada governo estadual e de cada governo municipal porque cada um deles tem uma situação específica em relação à pandemia e à própria rede. É uma ação local, não poderia ser diferente.

Valor: E o que caberia ao Ministério da Educação?

Schneider: A gente vive nesses últimos dois anos uma ausência do MEC nas discussões relativas à educação no Brasil, especialmente educação básica. Nesse momento, o MEC poderia estar ajudando na definição de protocolos, criando campanhas de informação sobre qual tipo de risco se corre ou não com a volta às aulas. Ou seja, o MEC deveria ser o maestro desse processo, respeitando as individualidades locais.

Valor: Ajuda financeira também seria uma possibilidade?

Schneider: Sim. O MEC também deveria apoiar as redes públicas num programa emergencial de recursos para pequenas reformas e para comunicação visual das escolas de como deve ser a circulação nessas escolas, nem todas têm recursos para isso. E, por fim, o MEC deveria criar material específico para formação de professores, gestores públicos e privados sobre como agir na pandemia. O MEC poderia assumir o seu papel, que não é de gestor de redes, mas de coordenação e orientação das redes.

Valor: Há expectativa de que possa acontecer daqui para frente?

Schneider: Dentro do histórico recente do MEC, eu acho que é muito difícil. Na verdade, a gente está dependendo dos governadores e dos prefeitos.

Valor: E prefeitos que estarão no primeiro ano de gestão

Schneider: Vai ser muito complexo para os prefeitos de primeiro mandato porque, além de estarem iniciando o primeiro mandato, eles estão com período de transição menor, de 15 a 20 dias, quando o normal era de três meses. Mais uma vez, ajudaria muito o suporte do MEC.

Valor: É consenso que a pandemia ampliou as desigualdades educacionais. É possível quantificar esse impacto?

Schneider: A pandemia, do ponto de vista da aprendizagem, é dramática, e vai exigir no retorno às aulas presenciais um grande esforço por parte de todos os gestores educacionais. Além disso, a gente já vem notando também nas pesquisas mais recentes no Brasil que está havendo impacto na saúde mental dessas crianças. Este conjunto de efeitos mostra o quão dramático é ampliar o tempo de escolas fechadas no Brasil, é fazer com que a gente tenha crianças e adolescentes com um buraco na formação como pessoa. Não é português e matemática, é toda a formação

Valor: É possível reverter o aumento da desigualdade?

Schneider: Primeiro, é preciso preparar um plano de retorno para os professores. Ele precisam entender como vai funcionar a escola durante a pandemia. E também é preciso ter um trabalho em relação à saúde mental desses professores, eles estão com receio e estão exaustos, também por questões pessoais. Segundo, deve haver um trabalho de recepção dos alunos, para que eles se reconectem com escola, professores e colegas.

Valor: E como resolver os déficits de aprendizagem acumulados durante este período?

Schneider: Aí o próximo passo é formar os professores, para que possam identificar as lacunas e os problemas que os alunos estão apresentando e possam agir sobre elas. Muito provavelmente a gente vai ter quase que salas multisseriadas, alunos do mesmo ano com saberes distintos que vão ter de ser trabalhados para que a gente possa ir levando todos para um nível básico ou mesmo nível.

Valor: Quanto tempo deve levar esse “reforço” dos alunos?

Schneider: Este vai ser um trabalho longo, vai demorar dois ou três anos para que esses alunos possam ir recuperando aquilo que deixaram de aprender neste período. As escolas são normalmente organizadas para entregar as mesmas coisas para todos e isso já é ruim em tempos normais. Na volta de uma pandemia, é ainda mais dramático. Um aluno que aprendeu pouco porque não teve acesso aos materiais pode simplesmente desistir da escola. As redes vão precisar de programas para evitar a evasão.

Valor: Mesmo sendo difícil, é possível fechar essa desigualdade?

Schneider: Para isso, o sistema tem de estar organizado para reduzir as desigualdades educacionais e não tratar todos como iguais. Isso significa que o MEC deveria pensar em um indicador que medisse a desigualdade educacional, não a média do desempenho dos alunos, como é o Ideb, porque isso seria um incentivo para que as redes trabalhassem para melhorar a qualidade de todos, e não a média da aprendizagem. É possível, mas demora.

Valor: Muita gente fala em uma geração pandemia…

Schneider: Acho que hoje o risco é grande de abandono escolar. Por mais que secretários e secretárias estejam se esforçando, a gente ainda tem uma sociedade que está muito dividida sobre a volta às escolas. A gente precisa criar um consenso sobre a volta às aulas e construir um consenso sobre qual é o papel da escola, que deve ser de fazer com que todos possam aprender e reduzir as desigualdades educacionais. A gente já tinha uma desigualdade e ela está sendo ampliada, o que também pode ser uma luz para a necessidade de a gente ter mais urgência na agenda da redução das desigualdades educacionais.

Valor: Qual sua expectativa para os próximos dois anos do MEC no governo Bolsonaro?

Schneider: Eu sou um otimista relativo. Olhando para os dois anos que se passaram, ninguém deve acreditar que alguma coisa vá mudar. Mas a gente tem de manter algum otimismo que, eventualmente, nos próximos dois anos, até pelo fato de o governo iniciar uma tentativa de eleição ou algo do gênero, queira mostrar serviço. Talvez o MEC consiga se reconciliar com a agenda da educação. Até o momento, o problema não foi só ter quatro ministros, foi a ausência de todos os ministros em discussões que são estratégicas.

https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/12/23/reduzir-desigualdade-de-aprendizagem-tem-que-ser-prioridade.ghtml