Edison Veiga ( matéria original da DW Brasil)
Reforma prevê maior carga horária e disciplinas optativas. Especialistas e diretores da rede pública temem que modelo “descolado da realidade” precarize o trabalho do professor e o ensino. Projeto de lei pede adiamento.
Instituído por Medida Provisória de 2016, convertida em lei federal no ano seguinte, o Novo Ensino Médio brasileiro deve entrar em vigor a partir da semana que vem, com o início do ano letivo no país. Há escolas privadas que retomam as aulas já na segunda-feira (31/01), e no caso do estado de São Paulo, por exemplo, o ensino público volta na quarta.
A norma impõe um aumento da carga horária — das atuais 800 horas mínimas para 1 mil horas, com previsão de aumento progressivo nos próximos anos — e uma grade curricular com optativas em que os alunos poderão se aprofundar mais em áreas como matemática, ciências da natureza, ciências humanas e linguagens.
Neste primeiro ano, as mudanças só valem para a primeira série do Ensino Médio. Assim, gradualmente, só em 2024 todas as três séries estarão sob a nova proposta. Há gargalos para a efetividade da mudança, e tanto especialistas quanto profissionais da educação ouvidos pela DW Brasil apontam dúvidas sobre a real melhoria do ensino.
Por um lado, coordenadores de escolas privadas demonstram otimismo e já estão apresentando os diferenciais como boas medidas para pais e alunos. Por outro, diretores de escolas públicas temem que a precarização do ensino impossibilite que o modelo funcione conforme o planejado.
Tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei que pede o adiamento da mudança. Segundo a autora do texto, a deputada Rosa Neide (PT), seria “temerário dar prosseguimento a uma reforma que altera de modo estrutural a última etapa da educação básica do país” em um cenário conturbado, principalmente considerando que a pandemia de covid-19 impôs um contexto bastante limitado ao ensino nos últimos dois anos. O projeto ainda será analisado por duas comissões da casa: a de Educação e a de Constituição e Justiça e de Cidadania.
“Agenda conteúdista e pouco crítica”
Para a coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, o novo modelo “faz um reducionismo no direito à educação, ao restringir as disciplinas, modificar algumas para conteúdos vinculados somente a um modelo de sociedade baseada no que dita o mercado”.
Além disso, ela acredita que a proposta falha por flexibilizar a docência, ao “aceitar como educadores pessoas sem formação na área, precarizando ainda mais o trabalho do professor e o próprio ensino”.
A nova grade, segundo ela, foca “em uma agenda conteudista” e “pouco crítica”. E, por não ser oferecida “de forma isonômica e com equidade a toda a população secundarista”, deve aumentar ainda mais as discrepâncias educacionais do brasileiro.
Como as escolas têm autonomia para a construção dessas matérias optativas, há um temor de que instituições públicas não consigam oferecer conteúdo adequado.
A reportagem ouviu três diretores, um de São Paulo, uma do Rio de Janeiro e outro de Minas Gerais. Eles pediram para não serem identificados mas disseram, na última quinta (27/01), que ainda não sabem como a medida vai ser implementada.
“Na atual conjuntura, é enxugar gelo”, comentou um deles. “Vamos aumentar a carga horária com o que temos. E apostar na criatividade dos professores para trazer os conteúdos de uma forma que possa ser classificada como inovadora.”
Outro dos ouvidos comentou que também há a preocupação de como os alunos que já trabalham para ajudar em casa vão conseguir conciliar o maior tempo na escola com suas atividades.
Educação integral x em tempo integral
Professor na Universidade de São Paulo (USP) e dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o educador Daniel Cara ressalta que há uma confusão entre “educação integral” e “educação em tempo integral”.
Ele explica que a ideia de educação integral remonta ao preconizado pelo educador, escritor e jurista Anísio Spínola Teixeira (1900-1971) e previa a formação integral “do cidadão humano”. “Ele acreditava, e eu compartilho dessa visão, que a escola é o caminho para garantir de fato uma educação de qualidade, uma sociedade mais democrática. Via a educação como uma máquina da democracia e da justiça social”, afirma.
Pela atual proposta, contudo, o que se prevê é o aumento da carga horária. “É boa a ideia do tempo integral. Mas não supera as qualidades de uma educação integral”, analisa Cara. “Uma educação integral com 5 horas por dia é melhor do que uma educação em tempo integral com mais de 7 horas. Há uma contradição na reforma ao pensar educação integral apenas como mais tempo de exposição ao professor.”
“Propostas descoladas da realidade”
No momento, as dúvidas parecem ser o maior problema. “Temos alguns grandes desafios pela frente, como a falta de consenso entre importantes atores, principalmente entre professores, gestores de escolas, pesquisadores”, aponta Anna Helena Altenfelder, presidente do Conselho de Administração da organização Cenpec.
“Não só sobre a organização propriamente dita do Ensino Médio, mas também sobre os princípios filosóficos, pedagógicos e políticos subjacentes à reforma.”
Parte dessa dificuldade de consenso foi justamente a maneira como a reforma foi conduzida — nascendo de uma Medida Provisória, sem debates na base. “É uma reforma antidemocratizadora da sociedade brasileira, elitista”, diz Cara. “É um absurdo uma reforma do ensino ser feita via Medida Provisória, sem discussões na sociedade.”
“Trata-se de uma grade e uma proposta descoladas das demandas e da realidade da educação, dos profissionais e dos estudantes, vinda de cima para baixo”, acrescenta Pellanda. “E agora há uma corrida para tentar cumprir, com deliberações autoritárias.”
Boa recepção na rede privada
Na rede privada, contudo, o planejamento já vem sendo feito, e as mudanças são apresentadas como positivas.
Coordenador do Ensino Médio na Escola Nossa Senhora das Graças, o Gracinha, de São Paulo, Paulo Rota avalia que a novidade permite aprofundar o trabalho “numa perspectiva interdisciplinar”. Nas aulas extras que devem ser oferecidas pela escola, “tudo já está arejado”.
“Não vai ter mais História, Geografia ou Física. Vai ser uma aula sobre um componente de georreferenciamento de dados, ou de estatísticas aplicadas à saúde pública”, exemplifica. “Teremos uma proposta mais de resolução de problemas”, conta.
Em sua instituição, o aluno terá um primeiro ano de “degustação” das áreas e, ao final do período, poderá optar por um dos “três itinerários” com as optativas. “Todos irão conversar com quatro eixos: investigação científica, processos criativos, intervenção e mediação sociocultural e empreendedorismo”, explica.
Pela nova regra, esse conjunto de optativas pode ser oferecido na quantidade que a escola definir — havendo, claro, pelo menos duas possibilidades. “Montamos três porque fica adequado ao modelo de gestão que temos hoje, ao nosso modelo de negócio. Escolhemos uma coisa muito pé no chão”, afirma Rota.
Um primeiro ano de experimentações até que o aluno defina o percurso igualmente foi a opção escolhida pelo colégio Carandá Educação, também de São Paulo. “A escola é importante para que o aluno possa escolher, construir caminhos. Isto que a mudança traz para a gene é uma ideia que já estava presente”, salienta o psicólogo André Meller, coordenador do colégio.
Ele lembra que os projetos a serem desenvolvidos nessa carga horária adicional devem estimular os estudantes a “lidar com situações-problema, com perguntas de cada uma das áreas do conhecimento, utilizando as metodologias dessas áreas”.
Coordenador do Ensino Médio do Centro Educacional Pioneiro, também de São Paulo, Álvaro Vieira Neto conta que a ideia é oferecer inicialmente duas opções de itinerários para os alunos — e isso já começa a valer logo no primeiro ano. Com tempo, adianta ele, “muitos outros” devem ser planejados.
Escolhas conforme aptidões
Para Altenfelder, há expectativas de que o Novo Ensino Médio amplie “o diálogo com as necessidades e expectativas dos jovens”. E isso pode ocorrer à medida que as escolas poderão oferecer um aprofundamento dos estudos nas áreas de conhecimento com as quais os alunos se identificam mais.
Segundo ela, isso pode contribuir “para aumentar o engajamento” dos alunos no acesso e na permanência na escola, “melhorando também os resultados da aprendizagem”. Uma solução, portanto, para “nossas grandes barreiras educacionais”.
Mas a discussão entre os especialistas vai além dos aspectos meramente pragmáticos. “É importante nos perguntarmos: a serviço do que está a reforma?”, frisa Altenfelder. “Da emancipação de alunos? Ou seja, para que possam fazer frente aos próprios projetos de vida, atuando na sociedade e no mundo do trabalhando, visando a uma maior justiça social e um desenvolvimento sustentável?”
“Ou o projeto está a serviço de formar mão de obra qualificada para o mercado, atendendo aos interesses de uma minoria?”, prossegue. “Essa é uma discussão importante que ainda circula e inquieta profissionais, famílias e os próprios jovens.”