‘Temos alunos com sofrimento psíquico em todas as salas’

‘Temos alunos com sofrimento psíquico em todas as salas’

Matéria escrita por Carolina Delboni e publicada pelo Estadão em 27/06/2022

As evidentes crises de depressão e ansiedade que vivem crianças e adolescentes pós-isolamento social colocam as escolas, que encerram o semestre letivo, sob o árduo trabalho de resgatar a convivência para recuperar a saúde mental dos alunos

Sabíamos, ou imaginávamos, que o isolamento social prolongado deixaria marcas em todos nós. Quais, não tínhamos ideia. Cientistas, neurologistas e psiquiatras se encarregaram de olhar com afinco para as sequelas que a pandemia provocou no sistema emocional do ser humano. Institutos e Fundações estiveram à frente de estudos e levantaram dados que foram importantíssimos para dimensionarmos o que, até então, era percepção.

Passados 27 meses, temos números e pesquisas suficientes que provam e evidenciam o quanto a educação brasileira e a saúde mental de crianças e adolescentes vivem à beira do abismo neste país. A frase não é força de expressão, é fato.

Um mapeamento feito pela Secretária da Educação do Estado e Instituto Ayrton Senna, revelou que 70% dos estudantes avaliados em contexto de pandemia relataram sintomas de depressão e ansiedade. Do grupo, um a cada três, afirmou ter dificuldades para conseguir se concentrar na proposta da sala de aula, outros 18,8% relataram se sentir totalmente esgotados e sob pressão, enquanto 18,1% disseram perder o sono por conta das preocupações e 13,6% afirmaram a perda da confiança em si.

Estudos realizados pelo Conselho Nacional da Juventude, em maio de 2021, mostraram que 54% dos adolescentes passaram a sentir ansiedade, 56% utilizaram as redes sociais de forma exagerada e 48% reclamaram de exaustão e cansaço constante.

Os números são expressivos e o dia a dia dentro das escolas, infelizmente, é a melhor amostra para justificá-los. Ao longo deste primeiro semestre letivo, professores e orientadores educacionais de escolas privadas e públicas se depararam com mudanças comportamentais expressivas entre alunos e a necessidade da busca por recursos e cuidados tornou-se primordial.

Professores acreditam que os diferentes comportamentos apresentados pelos alunos têm explicação e são absolutamente compreensivos dado o contexto pandemia. Crianças e adolescentes passaram uma fase importante da construção das suas relações sociais, e da própria identidade, onde todo universo possível se reduziu a uma tela e as quatro paredes de casa. Impossível tal recolhimento, chamado por especialistas de atrofia social, não os colocar diante das próprias vulnerabilidades.

Edneia Letícia Marguti, professora de educação infantil na EMEI Guilherme Rudge, conta que junto do comportamento eufórico de crianças entre 4 e 6 anos ao retornar ao ambiente escolar e reencontrar colegas, percebeu que algumas trouxeram traumas consigo. “Há aquelas que chegaram aqui e só conseguiam falar: ‘água’. Só isso, sabe? Percebemos que elas chegaram não sabendo nada ou quase nada sobre o lugar escola”, diz a educadora.

“Identificamos também uma maior dificuldade de concentração. Eles estão muito inquietos e não prestam atenção no que a gente fala. Sentimos que algumas crianças estão mais egoístas e sentem dificuldade de compartilhar os brinquedos com os amigos,” analisa Ednéia.

Fernando Pimentel, coordenador do 7º, 8º e 9º ano do colégio Oswald de Andrade, concorda com o ponto de vista. Para ele, o desejo pessoal se tornou um imperativo mais urgente, o que dificulta a construção de um ambiente propício às aprendizagens escolares. “Além disso, os alunos do Ensino Fundamental 2 estão numa fase da vida em que o contato com os pares é imprescindível. Parecem estar com uma demanda represada para este contato, o que deixa as conversas paralelas mais frequentes em sala de aula”, avalia.

Para ele, essa geração também foi privada do acesso aos contextos culturais que são combustíveis em sala de aula e que, apesar de ter pleno acesso à informação, não sabe o que fazer diante de tantas informações. “O que vemos neste sentido é uma certa passividade, como se esperassem que alguém resolva os impasses típicos da aprendizagem, antes mesmo de dedicarem esforços à resolução dos mesmos”, conta.

Crianças e adolescentes voltaram sim mais passivos ao ambiente escolar. Em sua grande maioria, aguardam pelos comandos, não sabem muito como agir quando eles não são dados pelos professores e perderam parte importante do repertório cultural e social que era material de trabalho em sala de aula.

Antes da pandemia, os alunos chegavam em sala de aula já com hipóteses e conhecimento prévio sobre determinados assuntos. Isso porque existia troca e diálogo dentro de casa, muitas vezes era algo que o irmão mais velho já tinha aprendido e comentava, além da existência da vida social. Idas a parques, exposições, clube, cinemas e shoppings eram programas que contribuíam para tal.

Voltar a conviver neste espaço coletivo que é a escola tem sido bastante desafiador. Mariana Doneaux, orientadora educacional do 6o e 7o ano, do Colégio Equipe, diz que ainda estão em processo de retomada das relações de confiança. “Ninguém saiu ileso da pandemia, muita coisa mudou. Esses jovens passaram dois anos com suas referências estacionadas. A gente percebe que muitas crianças sofrem com a falta de interação e de aprendizado com o outro. Uma criança uma vez me falou que sentia falta de olhar para o colega do lado e ver a reação da cara dele com dúvida de alguma matéria, só pra sentir que era a mesma dúvida dela”, exemplifica.

Algo que parece muito simples, mas que é fundamental para a constituição seja da criança, seja do adolescente. Se reconhecer entre pares e poder validar os sentimentos são razões pelas quais as relações sociais são basais em ambas as fases, ainda que cada uma tenha suas particularidades.

Agora é preciso reaprender a socializar e se apresentar diante dos colegas. Daniel Helene, coordenador dos Anos Finais do Fundamental, na Escola Vera Cruz, conta que junto com a alegria da volta, veio também a sensação de falta de privacidade, já que durante as aulas tinha quem pudesse fechar as câmeras, quando não quisesse ser visto, o que na visão dele, é uma atitude comum do adolescente. “Quando você está no presencial, não tem como fechar a câmera, né? Você não controla mais o olhar que o outro pode depositar sobre você. Ou pelo menos não há mais a ilusão de que você controla isso. E dessa maneira pode ficar insuportável para eles”, argumenta.

O coordenador conta que antes da pandemia, os conflitos existiam, mas hoje são mais frequentes. “A enfermaria da escola vive cheia. São problemas de convivência, pequenos conflitos entre eles e às vezes brigas mais sérias. Na verdade, não é só difícil para os alunos, mas acho que para todos da escola e toda a sociedade, que faz com que o nosso conviver também não seja exatamente fácil”, avalia Daniel.

Maria Aparecida Aguiar Correia da Rocha, diretora da EE Professora Maud Sá de Miranda Monteiro, diz a escola entende que esse processo de acolhimento acontece de modo individual e que não existem regras e por isso contam com a ajuda do Psicologia Viva, programa oferecido pelo Governo do Estado que contribui com profissionais que fazem palestras, trabalhos de escuta com pequenos grupos, justamente para tentar amenizar as questões. E também com a professora Cida que é terapeuta ocupacional e procura trazer atividades diferentes aos alunos.

Com o suporte de materiais de circo e teatro, a professora Cida propõe atividades lúdicas e coletivas aos alunos na tentativa de trabalhar as emoções e os conflitos que têm aparecido na escola

Segundo a diretora, eles têm percebido também alunos com crises evidentes de ansiedade e depressão. “O mais estranho é que os estudantes que aparentemente estavam bem, começaram a ter gatilhos por causa dos colegas doentes. Quando a gente se dava conta, a maioria estava com algum problema”, conta ela que já tinha estruturado um planejamento prévio para acolher os estudantes com questões.

Para Dr. Guilherme Polanczyk, psiquiatra da infância e adolescência, coordenador do Núcleo de Pesquisa em Neurodesenvolvimento e Saúde Mental da USP e Chefe da Unidade de Internação do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Instituto de Psiquiatria, no Hospital das Clínicas, os efeitos negativos do pós-isolamento também se relacionam com a falta de estímulos para criar experiências que é a base de todo desenvolvimento deles. “As crianças, por exemplo, não desenvolveram habilidades cognitivas ou sociais e os adolescentes também não tiveram as experiências e relações sociais esperada. Agora é como se tivessem que viver tudo aquilo que não viveram de uma forma mais intensa, com mais dificuldade de controlar impulsos e emoções”, explica.

Ele também enfatiza que é necessário pensar nas diferentes faixas etárias e sobre suas tarefas de desenvolvimento e como esse contexto pode ter afetado, sobretudo os adolescentes, já que eles foram privados de suas tarefas de criar intimidade com outros adolescentes e de desenvolver a sua identidade, o que difere das crianças menores, por exemplo. “Há uma grande variabilidade do efeito da pandemia e, que depende muito da própria saúde mental dos pais, da estrutura da família e das dificuldades que esses jovens já tinham antes disso”, esclarece.

O RESGATE DA CONVIVÊNCIA
Diante das novas realidades que se apresentam, as instituições de ensino buscam desenvolver, e manter, ações em toda a rede. Antes do retorno, escolas públicas e privadas criaram planejamentos com estratégias pedagógicas para amenizar, acolher e intervir no sentido de coletivizar as questões que atravessam crianças e adolescentes, entendendo que o sofrimento não é uma questão individual, mas a consequência do momento histórico que o país inteiro viveu.

“A sociedade sofre com este retorno ao coletivo tão fragilizado pelo isolamento, mas também pelo modo como temos lidado com a política da vida cotidiana e pública de nosso país. Até a reorganização do grêmio estudantil se transformou em conteúdo de discussão dentro e fora das salas de aula, assim como as discussões sobre como ocupamos coletivamente os espaços da escola e da cidade olhando para o entorno”, conta Ana Cristina Bortoletto Dunker, diretora da escola Carandá.

Na visão do coordenador Fernando Pimentel, do Oswald de Andrade, é importante fazer investimentos intencionais para permitir àqueles que se distanciaram na escola remotarefaçam o vínculo com os demais, tendo em vista que esses jovens foram privados de contatos com os pares. “Hoje há alunos em situações de sofrimento psíquico em todas as séries do Ensino Fundamental 2. Por isso, a flexibilidade na lida com questões escolares, as diferentes formas de avaliação e de apresentação dos conteúdos são estratégias que nos parecem importantes para lidar alguns alunos neste momento”.

“Em nossa escola, contamos com aulas de Orientação Educacional e o Projeto de Vida, espaços privilegiados para discutirmos o processo dos grupos. Temos nos dedicado às reflexões em torno do respeito ao coletivo, das posturas que contribuem ou conflitam com a sala de aula, bem como do que é esperado deles enquanto estudantes. Percebemos que tais esforços são necessários”, avalia.

Por outro lado, Edneia Marguti, da escola pública de educação infantil Guilherme Rudge, vê com otimismo e esperança a recuperação das crianças mais novas. “Apesar delas terem perdido muito com a pandemia, têm uma facilidade muito grande de aprendizado. São muito rápidas, então acreditamos que vão conseguir muito em breve recuperar tanto as questões de aprendizado, como também sociais”.

As escolas também têm trabalhado com espaços de descompressão e relaxamento como clubes de leitura, músicas e atividades dentro de projetos sociais. “O Equipe tem a tradição de trabalhar projetos sociais, então, pensamos em retomar as atividades para os nossos estudantes passarem por uma formação com educadores do instituto e atuar em creches, EMEIs com atividades lúdicas e brincadeiras com crianças da educação infantil e do ensino fundamental I”, conta Mariana.

Viagens e exposições também fazem parte do programa de resgate do repertório cultural como também das conexões das relações sociais. Na escola Vera Cruz, por exemplo, Daniel conta que eles têm promovido visitas a museus, exposições e até viagens já aconteceram. “Recentemente, o sétimo ano foi ao Museu Afro Brasil e o oitavo foi ao Theatro Municipal para ver a exposição Contramemória. Sexto, sétimo e nono ano já viajaram. A gente tem um conjunto de atividades que são extraescolares, mas que podem viabilizar certa reposição desse repertório”, diz.

Movimentos como estes são formas, não apenas de repertoriar os alunos novamente, como também de cuidar das questões sociais e emocionais que eles trazem. Originar momentos de socialização, conversas, debates e atividades que buscam o exercício das relações sociais têm se mostrado fundamental.

Enquanto isso, a longo prazo, precisamos pensar em formas de prevenção e cuidados com a saúde mental dessas crianças e adolescentes.“É necessário uma reflexão mais ampla da sociedade para as questões que possam interferir no desenvolvimento de crianças e adolescentes, levando em conta o grande número de jovens com problemas e isso envolve escolas, famílias e Estado”, finaliza Polanczyk.

A pandemia expôs uma questão que já era viva e agora é preciso olhar com maior constância e gentileza. Sim, crianças e adolescentes precisam do olhar gentil do adulto. Porque o assunto não é passageiro, infelizmente.

* colaborou Elaine Vale

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