Em novo afastamento do MEC, SP cria material que, mesmo impresso, não substitui livros, dizem especialistas

Em novo afastamento do MEC, SP cria material que, mesmo impresso, não substitui livros, dizem especialistas

Matéria publicada pelo OGLOBO em 07/08/2024

Estado recusou dez milhões de exemplares de material didático alegando que escolhas do Ministério da Educação são rasas e enfrenta resistência de especialistas e profissionais da rede

Os materiais didáticos que serão os únicos disponíveis para os alunos da rede estadual de São Paulo a partir do ano que vem não substituem, mesmo impressos, os livros didáticos que foram desprezados pelo estado, dizem especialistas. Ainda segundo os analistas, a decisão de rejeitar os livros do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) reforça o perfil centralizador da gestão e as divergências que o secretário Renato Feder tem protagonizado com o Ministério da Educação (MEC) — como aconteceu com as escolas cívico-militares e com os destinos do novo ensino médio.

Na semana passada, Feder recusou quase 10 milhões de livros comprados pelo MEC através do PNLD. Num primeiro momento, os professores teriam o material apenas no formato digital para o apoio às aulas, que seria usado em slides. Anteontem, após repercussão negativa, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) declarou que o material também será impresso e distribuído para qualquer aluno que desejar. A impressão também seria a solução em caso de falta de equipamentos.

A medida afeta os alunos do 6º ao 9º ano do ensino fundamental e do ensino médio. São 2,8 milhões de estudantes atingidos.

— Há alguns anos, materiais de apoio de redes educacionais garantiram a adaptação de algumas aprendizagens a realidades ou currículos locais. Isso é relativamente comum em redes públicas. No entanto, não adotar o PNLD parece arriscar um parâmetro de acesso ao livro que o programa alcançou em várias décadas de aprimoramento — diz Victor Schlude, doutorando em linguística da Unicamp.

Feder chegou a afirmar em entrevistas que os livros— escolhidos ainda no governo de Jair Bolsonaro e comprados pelo MEC — eram “rasos”, “superficiais” e que “perderam conteúdo, profundidade”. Porém, essas mesmas obras desprezadas são utilizadas por escolas privadas tradicionais da capital paulista, como mostrou reportagem do jornal Estado de S. Paulo.

A decisão tem sido amplamente criticada por especialistas e profissionais da rede. Na quinta-feira, o Ministério Público de SP abriu um inquérito para investigar o caso.

Para especialistas, mesmo com o anúncio de que o material seria impresso, ele não substitui o livro didático, por serem dois tipos distintos de instrumentos pedagógicos.

Claudia Costin, ex-diretora de educação do Banco Mundial, afirma que vê com bons olhos a tentativa de padronizar o material de apoio ao professor em toda rede. Mas que é um erro sair do PNLD.

Os novos materiais trazem um roteiro para o professor. Numa aula de língua portuguesa para o 7º ano, a que o GLOBO teve acesso, é definido como o docente deve começar a aula, em que momento apresentar o texto e que exercícios serão feitos.

— São os livros didáticos que aprofundam os conteúdos para os estudantes — explica Costin. — Ter um roteiro não é problema, se for só uma sugestão. O professor não pode é ser obrigado a seguir esse roteiro.

Professor de políticas educacionais da Universidade Federal do ABC, Fernando Cássio, critica a centralização.

—Essa gestão tira do professor sua capacidade de pensar e sua tutela pedagógica — diz.

A recusa dos livros do PNLD reforça duas tendências da gestão educacional de São Paulo. De um lado, é mais uma decisão em que o estado se afasta da política conduzida pelo MEC. Em julho, quando o governo Lula decretou o fim do programa de escolas cívico-militares, Tarcísio anunciou a sua continuidade por um modelo próprio. Além disso, a Secretaria de Educação já anunciou os destinos para o seu formato de novo ensino médio, com um enxugamento dos itinerários formativos, antes mesmo de o ministério terminar a consulta pública para definir o que fará com a reforma.

Do outro lado, a iniciativa reforça o perfil centralizador das estratégias pedagógicas na secretaria, em busca de resultados nas avaliações educacionais. Ex-colegas do secretário contam que Feder é um obstinado por resultados e gosta de acompanhá-los de perto. Ainda na semana passada, o governo determinou que diretores assistam a duas aulas de cada professor para avaliação.

— No mundo ideal, assistir às aulas não haveria problema. Mas numa rede com condições de trabalho extremamente precárias, e instâncias de controle variadas, em que se usa a tecnologia para controlar as pessoas, isso não é para melhorar o processo educativo, mas para controlar as variáveis do sistema — diz Cássio.

Ruídos na rede

O governo também criou a Prova Paulista, realizada digitalmente a cada bimestre, que mostra o desempenho dos alunos praticamente em tempo real. No fim do ano, haverá ainda um Provão Paulista para avaliar o ano. Como estímulo à participação, essa edição garantirá mais de 10 mil vagas dos estudantes da rede às universidades paulistas, como USP, Unicamp e Unesp.

Professores são estimulados através do pagamento de até dois salários extras, caso metas sejam batidas em avaliações nacionais no fim do ano.

— Não acho equivocado centralizar e coordenar um pouco mais, pensar em rede, usar dados de avaliações bimestrais — afirmou Costin.

No entanto, essa postura causou desgastes com a rede. Hélida Lança, diretora de uma escola estadual na capital, afirmou que as medidas estão transformando os professores em “mero executores”.

— Só comprova uma postura ideológica e política. No estado de São Paulo, o professor vem sendo cada vez mais transformado em mero executor. Querem nos retirar toda a capacidade crítica, de tomada de decisões, de fazer escolhas. Mandam a coisa pronta, dizem “vai lá e executa”. E esse excesso de coisas, como também obrigar diretores a assistir aulas, vai enchendo nossa rotina de trabalho a ponto de não sobrar tempo nem para a reflexão — diz.

Isso porque, na avaliação dela, o novo material didático em São Paulo é tido como um ataque à autonomia de professores e à qualidade de ensino dos alunos, especialmente os mais vulneráveis, opinam professores e diretores da rede estadual de ensino.

— Não paro de pensar no “Queimem os livros” de Hitler. Claro que proporção e momento são outros, mas o que está acontecendo é assustador. Além de não termos participado da decisão, porque ninguém nos perguntou nada, ficamos sabendo dela pela imprensa. A escola tem que ser o lugar dos livros. E isso não coloca a tecnologia em lugar menos importante. Precisamos conciliar as duas coisas — diz Hélida Lança, diretora de uma escola da rede estadual na capital paulista.

O Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do estado de São Paulo ingressou com um requerimento junto ao Ministério Público Federal, depois que o Ministério Público de São Paulo instaurou um inquérito para apurar a decisão da Secretaria de Educação.

“A Suécia é um exemplo desse problema. O país recuou totalmente no processo de digitalização integral da Educação, ao se verificar que a aprendizagem dos estudantes havia despencado. Se a Suécia passou por esse tipo de consequência, o que dizer de uma rede pública de ensino no contexto das gravíssimas deficiências educacionais de São Paulo e do país?”, escreveu a deputada estadual Professora Bebel (PT), segunda presidente da Apeoesp.

Em nota, a secretaria declarou que as ações pedagógicas são definidas com base no material próprio, “mantendo a coerência pedagógica em toda rede estadual” e diz que “cada professor possui autonomia para preparar e ministrar suas aulas”, inclusive, podendo editar os materiais digitais, “para que se adequem à realidade de cada comunidade escolar”.