Antonio Clarét Maciel Santos, egresso da Faculdade de Direito (FD) da USP
1973: presidente da República, General Garrastazu Médici; ministro da Educação, coronel Jarbas Passarinho; ministro da Justiça, professor Alfredo Buzaid; governador do Estado de São Paulo, Laudo Natel; reitor da USP, Professor Miguel Reale; diretor da Faculdade de Direito da USP, professor José P. Antunes. Vigência do Decreto 477 de 26/02/1969.
Em março, o estudante de Geologia Alexandre Vannuchi Leme foi preso, torturado e morto pela repressão. Seguiu-se missa de sétimo dia na Catedral da Sé celebrada pelo Cardeal D. Paulo Arns. Atrás dos vários altares laterais no interior do templo, viam-se policiais camuflados. Milhares de estudantes, ao saírem em cortejo da catedral, entoaram, entre soluços, a música símbolo de Geraldo Vandré “Pra não dizer que não falei de flores”, até serem obrigados a se espalharem, diante de ordens do policiamento.
Na Faculdade de Direito, os ânimos estavam exaltados, discursos no pátio das Arcadas e na Tribuna Livre, na presença de centenas de populares. O movimento estudantil retomava as manifestações contra a ditadura, mesmo com prisões de estudantes feitas na calada da noite.
Em outubro, o presidente da UNE, Honestino Guimarães, a exemplo de seu antecessor Jean Marc, foi preso e ambos, desde então, nunca mais foram encontrados, situação que ainda perdura, ao que consta.
As autoridades que comparecem ao primeiro parágrafo decidiram mudar a Faculdade de Direito do Largo São Francisco para o campus da Cidade Universitária, no Butantã. A presença dos estudantes de Direito no centro da cidade incomodava o regime ditatorial e, para tanto, escolheram o terreno e programaram para o dia 30 de outubro o lançamento da pedra fundamental do futuro prédio.
A notícia chegou às Arcadas célere e se tornou no único assunto no pátio, corredores e salas de aulas e, por incrível que pareça, unia a direita e a esquerda. Esta, concentrada no curso noturno, não aceitava o sítio longínquo, aquela formada por alunos do curso diurno, elitista, sempre de trajes engomados não admitia ver-se misturada aos “universitários” do campus e via como “absurda possibilidade” o fim do chamado “Território Livre do Largo de São Francisco”, então com 146 anos.
Até a noite de 29 de outubro, discussões ocorreram nos bares em torno da faculdade, em busca de ideias e modos de ação para atrapalhar o ato governamental que seria realizado no Cidade Universitária, às 10 horas, do dia seguinte. Chegou-se à unanimidade: “roubar” a pedra fundamental, como fizeram os acadêmicos em 1966 quando “roubaram”, da entrada do túnel 9 de Julho, a escultura em bronze “O Beijo Eterno” e a colocaram no Largo de São Francisco, onde permanece até hoje, ou ainda como fizeram os acadêmicos no século 19 ao “roubarem” a escultura do “veado dourado” que encimava a porta da Botica “Ao Veado d’Ouro”, na Rua São Bento, ou ainda o célebre “roubo” dos perus premiados em exposição no Parque da Água Branca, na década de 40, aves de propriedade de um professor, evento que deu origem à “peruada”. Tais fatos e outros correlatos sempre denominados “estudantadas”.
O grupo do noturno planejou a expedição acadêmica ao campus para a noite do mesmo dia do ato, com designação de quem iria à cerimônia para anotar detalhes do exato local e seu acesso, mapas, a constituição da caixa onde seriam colocados documentos e o decreto autorizador da obra etc. Outros foram incumbidos de escondê-la na faculdade. Outros ainda ficaram com a obrigação de preparar o local no pequeno jardim ao lado da Tribuna Livre para ser sepultado o indigitado troféu. Dois dos participantes iriam convidar a mídia da época para a solenidade que ocorreria na noite de 31.
Para nós, tudo pronto, fomos dormir na madrugada de 30, após muitas cervejas, se é que dormimos.
Contudo, no Jardim Paulista, Rua Pamplona esquina com Rua José Maria Lisboa, na Pizzaria Carreta, ponto de boemia de acadêmicos “da direita”, sob a curatela do antigo aluno Caio Pompeu de Toledo (Turma de 1968), o assunto era alvo de discussão e a proposta vencedora era a mesma, “roubar” a pedra fundamental, mediante a idêntica logística do nosso grupo, com acréscimos de banda de música e fogos na solenidade de sepultamento no Largo.
Dia 30 de outubro, terça-feira, 10 horas. Na Cidade Universitária, tudo pronto. Palanque, autoridades, discursos. O professor José P. Antunes, muito elegante como sempre, gravata estilo borboleta, proferiu discurso, elogiando o ato e disse que estava ali para ratificar a adoção da faculdade pela USP datada de 1934 e como um cristão a entregava, tratando-a como se fora uma noviça (Rev. FADUSP vol 68/2 pags 403/405}. Uma chuva singela compareceu e antecipou o fim da cerimônia.
Dispersos todos os convivas, os dois acadêmicos do “Grupo da Carreta”, permaneceram escondidos e pensaram e decidiram antecipar os passos seguintes do projeto, marcados para a noite e de imediato, aproveitando o frescor do cimento que fixava a caixa, fizeram o serviço que seria feito por um pedreiro e transportaram para “a cidade” a cobiçada pedra fundamental, levando-a para o escritório do pai de um deles.
Na parte da tarde, reuniram-se todos em torno da caixa de cobre e deram início às fases seguintes da epopeia. Decidiram que, sepultada ao lado da Tribuna Livre, sobre ela seria colocada uma pedra de mármore com uma inscrição gravada, para perpetuar o evento e para tanto correram a uma das oficinas de arte tumular, defronte ao cemitério da Consolação.
Precisava-se de uma inscrição, tipo epitáfio. Sugestões daqui, sugestões dali. Caio Pompeu de Toledo ditou: “quantas pedras forem colocadas, tantas arrancaremos”, seguida pela data “30/X/1973”. E assim foi feito.
O dia seguinte. Aulas diurnas interrompidas por fogos e acordes da tradicional bandinha de música que, além de suas apresentações em lojas do centro, sempre abrilhantava os eventos acadêmicos, como as eleições para C.A. XI de Agosto; populares curiosos, imprensa, TV, fotógrafos; discursos, canto das trovas acadêmicas com muito fervor e a caixa de cobre com objetos e documentos foi enterrada no canteiro ao lado da Tribuna Livre.
E o grupo do noturno que também havia programado o “roubo”? Compareceu, sim, ao campus na noite de 30, procurou o local, mas deu com os burros n’água, ou melhor, nos atoleiros do charco ao topar com a ausência da caixa e ver-se alvo da destreza dos colegas da manhã. Contudo, na noite de 31, não deixou por menos e continuou ativamente as comemorações com discurso abrasador do Paulo Eiró, cervejas, cânticos acadêmicos e repetição dos festejos no sétimo dia do “roubo”, também com destaques nos jornais e revistas.
Em 1976, o fantasma da transferência ressurgiu na congregação da faculdade. Alunos e antigos alunos remanescentes de 1973 uniram-se, com a criação da “Ordem da Pedra” e realizaram manifestações e até mesmo a encenação do “Dia do Fico” durante as solenidades do 11 de agosto. Na noite desse dia, após o entrada solene do governador rumo ao salão nobre, ainda sob os acordes da “marcha batida” executada pela banda da Polícia Militar, um cortejo adentrou o pátio das Arcadas, tendo à frente sobre um cavalo branco a figura de Pedro I, que leu um “decreto e seus considerandos” que terminou com o grito sucessivo dos presentes: “nós ficamos, nós ficamos”.
“Resistentes à transferência da faculdade para o campus do Butantã, os alunos lapidaram a escritura naquela que seria a pedra fundamental do novo prédio. O ato, que culminou com a manutenção da Faculdade de Direito em seu local tradicional, talvez seja um dos símbolos mais fortes de apropriação e demarcação de território cultural na sua relação com a cidade” (Ana Luiza Martins in A São Francisco na Dinâmica da História e na Memória da Cidade – in Cidades Universitárias: Patrimônio Urbanístico e Arquitetônico da USP, Edusp, 2003 pag. 14).
O professor Goffredo da Silva Telles Junior, em entrevista à Folha de S. Paulo, à época, disse “a sede da Faculdade de Direito é o Largo de São Francisco, tribuna dos nossos políticos, dos nossos poetas e de nossos heróis. Largo que foi regado com sangue dos estudantes na luta contra o despotismo, sempre em favor das liberdades fundamentais da pessoa humana”.
E a velha Academia permanece jovem e firme no Largo de São Francisco rumo aos 200 anos de gloriosa existência.