Por que crianças não devem usar as redes sociais?
Especialistas falam a Gama sobre os principais danos ao desenvolvimento infantil causados pela exposição precoce e excessiva a aplicativos como YouTube, Instagram e TikTok
Matéria publicada na Revista Gama dia 06/11/2023
A influência das redes sociais na autoimagem das crianças é um tema que tem suscitado debates e causado bastante preocupação em pais, cuidadores, psicólogos, pediatras e pedagogos que, ano a ano, acompanham a disseminação sem freios de diferentes plataformas online. Isso porque o acesso precoce a aplicativos como YouTube, Instagram e TikTok prejudica significativamente o desenvolvimento infantil, afetando meninas e meninos principalmente em questões relacionadas à autoestima, à autoconfiança e à percepção do próprio corpo.
A maioria das mídias sociais disponíveis no país estabelece os 13 anos como a idade mínima para a criação de um perfil, mas burlar as regras desses sistemas é uma tarefa extremamente fácil, sobretudo para os nativos digitais.
Tanto que a pesquisa TIC Kids Online Brasil, lançada em outubro de 2023 pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), mostrou que as crianças brasileiras estão se conectando mais cedo à internet: 24% dos entrevistados relataram ter começado a se conectar ainda na primeira infância, ou seja, até os seis anos —para compararmos, na edição de 2015 do estudo, a proporção era de 11%.
Mas o que essa garotada faz na vastidão da rede mundial de computadores? Navega pelas mais diferentes timelines. De acordo com a pesquisa, 88% da população de 9 a 17 anos disse manter perfis em redes sociais, sendo o Instagram (36%) a mais usada pela faixa etária, seguido pelo YouTube (29%) e pelo TikTok (27%). Já no recorte que vai especificamente dos 9 aos 12 anos, o YouTube lidera com 42%.
A exposição precoce das crianças às redes pode levar ao agravamento da insatisfação com a imagem corporal, entre outros problemas
Os danos dessas elevadas porcentagens, que constatam a exposição de crianças muito novas às redes, podem ser variados e são significativos: agravamento da insatisfação com a imagem corporal, baixa autoestima, comparação social em demasia, comportamentos alimentares de risco, exposição a conteúdos prejudiciais, como a automutilação e o suicídio, perturbações no sono e um aumento no risco de problemas de saúde mental.
Tauane Gehm, psicoterapeuta e pesquisadora do desenvolvimento de crianças e adolescentes, cita um relatório publicado pelo U.S. Surgeon General, órgão ligado ao Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, que revelou que crianças e adolescentes que passam três horas — ou mais — por dia nas redes sociais têm o dobro do risco de desenvolver psicopatologias, como quadros de depressão e ansiedade.
Em busca do corpo “perfeito”
Psicóloga voluntária do Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, Caroline Sorgi destaca ainda a pressão social — hoje exercida, predominantemente, por meio das redes — que preza a excelência, a perfeição. No entanto, essa perfeição é irreal.
Isso é colocado para as crianças de uma forma que faz com que elas se sintam muito insuficientes
Ela ressalta que a exposição constante a corpos idealizados nas redes sociais pode levar crianças a se sentirem insuficientes e a buscar padrões inatingíveis de beleza. “A gente vive numa sociedade que procura, a todo custo, a perfeição, mas é uma perfeição que não existe. E isso é colocado para as crianças de uma forma que faz com que elas se sintam muito insuficientes”, diz.
Caroline fala que a criança que acessa esses conteúdos e se frustra ainda não tem maturidade e discernimento para compreender que os corpos exibidos pela TV e pelo Instagram não são reais — o que, sabemos, não é fácil nem para adultos conscientes.
“Você pode malhar o quanto for e comer toda a comida saudável do mundo que o seu corpo não será igual ao da influencer porque aquele corpo é construído à base de lipoaspiração, suplementação, horas e horas de atividade física ou até por meio da não ingestão de alimentos. A Gabriela Pugliesi, por exemplo, não passa seis, oito horas por dia sentada”, explica a especialista.
Filtros e edições de fotos são comuns nas redes, e a imagem postada, muitas vezes, é uma exceção meticulosamente produzida que não reflete a realidade. A psicóloga e doutora em psicologia experimental pela USP Tauane Gehm comenta que “sem a capacidade de discernir sobre a idealização presente nas redes sociais, a criança pode começar a avaliar o próprio corpo com base em padrões inatingíveis”.
A falta de autocrítica em relação às representações nas redes sociais pode ter um impacto grande na construção da autoimagem e no desenvolvimento de uma relação saudável com o corpo
O que, segundo ela, pode levar a uma rejeição do corpo real em favor de um ideal irrealista. “Por isso, a falta de autocrítica em relação às representações nas redes sociais pode ter um impacto grande na construção da autoimagem e no desenvolvimento de uma relação saudável com o corpo”, afirma.
A psicóloga Caroline Sorgi conta que, além da questão da autoestima infantil, prejudicada por padrões utópicos, a criança passa a superdimensionar as próprias “imperfeições”, enxergando todo tipo de defeito: na barriga, nos cabelos e na pele. “Assim, a criança vai se achando inferior e se coloca como alguém incapaz de atingir os parâmetros que julga como ideais, fazendo com que ela se sinta desencaixada e excluída.”
E esse ciclo, da busca pela perfeição à autodepreciação, tem levado garotas e garotos muito jovens a desenvolverem distúrbios alimentares, como anorexia e bulimia. “O índice desses transtornos é alto, e eles estão aparecendo cada vez mais em crianças novinhas, que querem esse corpo que, na realidade, não existe. Ele é construído”, pontua Caroline.
Like, like, like
Tauane Gehm enfatiza que a exposição precoce às mídias sociais também estimula a busca incessante por aprovação. A pressão por curtidas em fotos e vídeos é capaz de levar as crianças a associarem seu valor pessoal à aceitação online. As representações de corpos “perfeitos” e estilos de vida ideais criam a ilusão de um padrão exemplar, que é inatingível.
“A estrutura predominante das redes sociais incentiva a busca constante de aprovação social, muitas vezes quantificada por ‘likes’ e compartilhamentos. Quando uma criança é exposta a esse ambiente desde cedo, ela corre o risco de internalizar esse processo, associando o sucesso em sua vida à aprovação pública”, assegura.
Criança nas redes sociais: dá para ser saudável?
O pediatra Daniel Becker é uma das vozes contrárias à presença dos pequenos nas redes sociais. Em um vídeo recente, publicado no perfil do médico no Instagram, ele rechaça o uso dessas mídias por crianças, principalmente o TikTok, que considera perigosa para a infância.
“Tem criança com TikTok. Gente, é inadmissível uma coisa dessas. É gravíssimo uma criança de cinco, sete, oito anos no TikTok, uma rede social perigosíssima onde se fala de nazismo, onde se fala de racismo, onde há intolerância de todo tipo. Onde se planeja, se comenta e também se faz apologia a ataques a escolas. E as pessoas deixam crianças no TikTok achando que elas estão vendo videozinho de dancinha”, alerta.
No post, o profissional salienta que a idade de uma possível entrada na rede deveria ser com, no mínimo, 14 anos. “Ou mais, de preferência. O [uso do] TikTok tem que ser controlado.”
Relembrando a idade mínima sugerida por grande parte das plataformas, que recomendam os 13 anos, Tauane Gehm diz que a maioria dos especialistas concorda que, nessa idade, os jovens ainda não possuem maturidade suficiente para lidar com os desafios e as complexidades que as redes sociais apresentam.
“Após atingirem os 13 anos, é essencial que os pais estejam atentos aos impactos do uso das redes sociais em seus filhos e monitorem de perto os efeitos. Regular o acesso por meio de uma observação sensível é uma prática recomendada para garantir que o uso das redes seja saudável”, explana.
Ela lista medidas parentais que podem ajudar a reduzir os impactos negativos das redes sociais. Além do monitoramento de pai, mãe e cuidadores, Tauane menciona o material “De Boa na Rede”, lançado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, que tem o objetivo de auxiliar os pais no monitoramento de diferentes plataformas de redes sociais.
Para a psicóloga, é crucial, ainda, educar a nova geração sobre a distinção entre o que pode ser compartilhado publicamente e o que deve permanecer no âmbito privado. “Eles também precisam entender a diferença entre a representação idealizada do mundo nas redes sociais e a realidade. Uma atitude particularmente positiva é os pais acompanharem os filhos enquanto exploram o conteúdo das redes sociais, orientando-os a adotar uma perspectiva crítica.”
Tauane sugere que, ao assistir a vídeos ou fotos, os pais podem ensinar os jovens a fazer perguntas como: “Qual poderia ser a intenção por trás desse conteúdo?”, “Quanto tempo foi investido na produção desse material?”, “Qual é a realidade da vida dessa pessoa por trás das redes sociais?”, “Por que é importante para essa pessoa apresentar sua vida dessa forma online?”, “Como essa pessoa se sentiria se seu conteúdo se tornasse viral?” “E se tivesse poucos ‘likes’?”, “Qual é a intenção da plataforma ao mostrar esse conteúdo a você? E ao usar a rolagem infinita automática?”, “Como você se sente ao ver esse conteúdo? Que ações isso desperta em você? É benéfico para sua saúde emocional?”.
“Ao adotar abordagens educativas e comunicativas, os pais podem ajudar as crianças a desenvolver um senso crítico e a utilizar as redes sociais de forma mais saudável e consciente”, conclui.
A escola também tem um papel fundamental na construção de uma relação mais saudável de crianças e adolescentes com as redes sociais, mostrando que as diferenças são benéficas para uma sociedade mais diversa e também na orientação dos familiares, conforme explica Patrícia Bignardi, coordenadora pedagógica do infantil e do fundamental 1 na Escola Tarsila do Amaral.
“Assim que identificamos uma exposição excessiva às redes sociais, conversamos com a família. Em um dos casos, por exemplo, propusemos aos pais a retirada das redes da criança, substituindo aquele uso por momentos de brincar dentro de casa, até mesmo de brincar sozinha, que é importante também. E o comportamento da criança foi mudando”, conta.