Sem celular na escola: a nova rotina de pais e estudantes

Sem celular na escola: a nova rotina de pais e estudantes

Matéria publicada em 02/02/2025 na Revista Gama

Especialistas falam como alunos, responsáveis e instituições devem lidar com a proibição do smartphone no ambiente escolar, ressaltando a importância do bom uso da tecnologia e da educação midiática para o aprendizado

Todo primeiro dia de aula causa aquela apreensão e uma certa ansiedade nos estudantes, que vão rever ou conhecer colegas, saber quem estará na turma, contar e ouvir histórias sobre as férias. Mas, em 2025, o início do ano letivo para milhões de alunos brasileiros, tanto da rede pública quanto da particular, será um tanto diferente, com uma mudança significativa no cotidiano escolar: a proibição do uso de celulares — nas classes, nos recreios e nas atividades extracurriculares. A medida faz parte da Lei 15.100/2025, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 13 de janeiro, que tem como objetivo “salvaguardar a saúde mental, física e psíquica de crianças e adolescentes”.

A utilização indiscriminada desses aparelhos, uma realidade de muitos, causa prejuízos consideráveis no desenvolvimento cerebral, no desempenho educacional e na estabilidade emocional dos mais jovens. É o que apontam inúmeras pesquisas e reportagens sobre o tema.

excesso de tempo de tela já é associado a dificuldades de concentração, queda na aprendizagem e impactos negativos na socialização. Estudos indicam ainda que o consumo exacerbado de redes sociais por essa parcela da população está diretamente ligado ao aumento dos índices de ansiedade, depressão, baixa autoestima, transtorno de imagem e insônia.

Além de mirar a melhoria desses aspectos, a nova regra deve ajudar a diminuir os casos de cyberbullying, considerado “mais cruel e devastador do que o bullying presencial, justamente pelo alcance que tem”, explica a pedagoga Andrea Nasciutti, no Podcast da Semana.

“O fato de os estudantes terem o celular à mão amplia muito a possibilidade de mandarem mensagens durante os intervalos, de filmarem situações indevidas, fotografarem, depois divulgarem”, diz.

Para Rodrigo Nejm, doutor em psicologia social e especialista em educação digital do Instituto Alana, essa mudança é uma oportunidade para repensar a relação que crianças e adolescentes têm com os smartphones e mídias como TikTok e Instagram. “A lei é um freio de arrumação necessário, bem-vindo, um ponto de partida. Porque estamos lidando com um modelo de uso do telefone que, muitas vezes, é passivo, pouco crítico e inseguro.”

Débora Garofalo, professora da rede pública de São Paulo e especialista em educação inovadora, comenta que essa proibição é necessária, porém, serve para um início. “É uma coisa drástica”, afirma. Mas ressalta que a medida não pode ser algo único e isolado; ela tem de vir acompanhada de conversas e ensinamentos. “A tecnologia faz parte da vida de meninas e meninos, que vão acessar um mercado de trabalho que exige o conhecimento em inteligência artificial, programação, robótica. Por isso, o papel da escola é trazer a pauta da educação midiática.”

Pensando nas dúvidas que pais, cuidadores, responsáveis e estudantes podem ter nesse momento desafiador, Gama ouviu profissionais, que deram dicas de como lidar com a questão.

O papel da escola é trazer a pauta da educação midiática

De volta às origens?

Antes da proibição passar a valer, muitos estudantes utilizavam o celular para tirar fotos da lousa, registrando conteúdos e tarefas rapidamente. E agora, como vai ser? Uma volta às origens — como os “maias” faziam? —, anotando manualmente? No TikTok, há uma trend em que garotas e garotos mostram que a alternativa vai ser recorrer às câmeras digitais de antigamente, como as famosas cybershots.

A educadora Débora Garofalo aponta sobre a necessidade de uma mudança cultural. “Essas crianças nasceram na era digital e não estão habituadas a registrar informações de forma manual. Os professores, então, precisarão enfatizar a importância da anotação à mão e da sistematização como parte do aprendizado”, explica.

Ela frisa que os docentes podem sugerir que os alunos utilizem dispositivos tecnológicos como complemento, apresentando programas digitais, como o Canva. “A gente não quer que esses jovens sejam apenas consumidores de tecnologia, mas que sejam também produtores. E que saibam consumir a tecnologia como um fim pedagógico de apoio.”

Ou seja, a tecnologia não deve ser demonizada. Rodrigo Nejm reforça que ela precisa continuar presente no aprendizado, mas de forma pedagógica e crítica. “A ausência do celular pessoal dos estudantes não pode significar menos educação digital”, fala.

Segundo ele, é obrigação da escola criar momentos para discutir sobre saúde mental e telas, cidadania digital e bem-estar online. “Na própria Base Nacional Comum Curricular [BNCC], há diretrizes já consolidadas para a educação digital.”

Na Escola Nossa Senhora das Graças, conhecida como Gracinha, instituição privada de São Paulo que baniu o uso do telefone nas salas há algum tempo, os professores já disponibilizam os apontamentos dos conteúdos por meio de plataformas digitais, a exemplo do Moodle. “Faz parte da aprendizagem a forma como os alunos registram e sintetizam as aulas”, conta Renata Chican, orientadora educacional do Ensino Médio da escola paulistana.

Comunicação entre pais e filhos: como fica?

Outro ponto bastante levantado é como pais e filhos vão conversar durante o turno escolar a partir de agora, com a impossibilidade de envio de mensagens instantâneas por parte dos jovens. Não há uma regra geral, de acordo com a lei. Cada instituição criará o próprio canal para isso.

No Gracinha, por exemplo, a comunicação familiar se dá via secretaria. “Sabemos que existem imprevistos e reorganizações no cotidiano e, por isso, continuaremos com a possibilidade de o estudante se comunicar com a família via escola (pelo Whatsapp institucional, por telefone ou e-mail) — e vice-versa”, elucida Renata Chican.

Podemos ajudar a construir novos hábitos digitais para que o imediatismo não atravesse as relações

A orientadora avalia que a Lei 15.100/2025 pode ofertar novas formas de organizar as rotinas das famílias, antecipando combinados. “Podemos ajudar a construir novos hábitos digitais para que o imediatismo não atravesse as relações da forma como temos vivido”, salienta.

Nejm, do Instituto Alana, reforça que, na prática, boa parte dessa comunicação é dispensável. “O que é realmente urgente continuará sendo tratado pelos canais oficiais das escolas.”

Como ajudar na desconexão dos filhos?

Com a proibição do celular na escola, os estudantes passarão menos tempo conectados durante o dia, o que pode gerar desconforto e ansiedade em quem está acostumado a usar o smartphone desenfreadamente. Para minimizar os efeitos dessa transição, os especialistas recomendam que os pais estabeleçam regras para reduzir gradualmente o tempo de tela e incentivar outras formas de lazer e de convívio — normas essas que devem ser seguidas por todos os membros da família.

A experiência da escola pode inspirar mudanças familiares, atesta Renata Chican. “Observamos alunos mais atentos e menos ansiosos, por exemplo.” Ela completa: “A nova lei é uma grande oportunidade para pensar sobre como esse uso acontece em casa. E, a partir disso, é possível oferecer momentos com mais trocas, como jantar juntos, praticar mais esportes e mais formas de viver o lúdico, como jogos de tabuleiro. Essas vivências ajudam as famílias a reconstruir a relação com o tecnológico.”

Rodrigo Nejm ressalta que a mudança tem de envolver os adultos porque, se pais, familiares e cuidadores passam o tempo todo no celular, fica difícil exigir algo diferente da criança e do adolescente. Pequenos ajustes na rotina digital familiar são capazes de fazer uma boa diferença, propiciando relações de mais qualidade.

Uma dica de Nejm é ir se desconectando aos poucos, antes de sair para a aula. “O caminho da escola pode ser um momentinho em família”, sugere. O especialista cita ainda as refeições, que, preferencialmente, devem ser feitas longe do telefone, assim como um pouco antes de dormir.

Além disso, ele diz que esta é a hora ideal para repensar muitas decisões ligadas às telas e às redes sociais. “Será que uma criança de nove anos realmente precisa de um celular? Se você, como família, acha que ela precisa, então reorganize o tipo de uso que será permitido.”

A pochete anticelular é uma solução?

Alguns pais têm buscado alternativas para garantir que os filhos respeitem a proibição do celular na escola, como a compra de pochetes anticelular, que bloqueiam sinais e impedem o acesso ao aparelho durante o período escolar. Algumas escolas particulares disponibilizam o objeto, mas a maioria das instituições de ensino, sobretudo as públicas, vão usar outros métodos de armazenamento do aparelho, como caixas, colmeias e armários.

Débora Garofalo acredita que a bolsinha é um investimento inútil, que passa uma imagem de punição aos estudantes, sem educá-los, e defende guardar os telefones em locais mais tradicionais e comuns a todos. Para a professora, útil mesmo é investir no currículo, pois é por meio dele que a educação acontece.

“Estamos falhando como sociedade em não educar para o uso da tecnologia, para o mundo digital, para o pensamento computacional. Se a gente chegou ao ponto de ter que proibir o celular é porque falhamos. É fundamental, portanto, fomentar ações para que os estudantes pensem nessa situação e aprendam a utilizar melhor esses meios de comunicação”, destaca.

Renata Chican relata que no Gracinha os alunos vão entregar os celulares para os professores logo na primeira aula e eles ficarão armazenados em uma caixa até o final do último tempo, quando serão devolvidos. A orientadora educacional pontua que o mais importante é que as regras sejam cristalinas e comunitárias.

Caso a escolha seja pelo uso da pochete, o importante, conforme Chican, é que todos tenham participado da decisão. “Com esses combinados coletivos, a comunidade escolar costuma apresentar menos desafios.”

A recomendação de Rodrigo Nejm, em um mundo ideal, é que o dispositivo fique o mais perto da entrada possível, em um ambiente seguro e fora do campo de visão dos estudantes. Ele justifica: “Há pesquisas indicando que o simples contato visual com o aparelho gera ansiedade e vontade de usá-lo”, finaliza.