POR CAROLINA DELBONI
Na semana em que se comemora o Dia Internacional da Visibilidade Trans, Claudia fala dos desafios da filha ao atravessar os muros da escola. “A humilhação é sempre no coletivo e o apoio no privado”
Ninguém nasce transfóbico, mas se educa para ser. Falar de gênero ainda é algo confuso, talvez porque não sabemos lidar com o que nos difere do outro – o que dirá com a diversidade. Definição de gênero é algo que cabe, única e exclusivamente, a pessoa que habita aquele corpo e mente. A forma como ela se identifica é que define seu gênero. E isso é único, é singular. Ser adolescente já é um desafio. Ser um adolescente trans é assustadoramente maior.
Mas vivemos num país diverso, das múltiplas culturas, do acolhimento as diferenças e dos 210 milhões de habitantes de norte a sul. Como assim podemos ser tão preconceituosos com os outros? Como aceitar que tamanha diversidade geográfica seja tão pouco diversa?
Claudia Armbrust é mãe da Celeste, uma adolescente transgênero que acabou de mudar de escola por conta do bullying que se tornou insuportável e sofrível. No começo do ano letivo, alunos do primeiro do Ensino Médio da Escola Waldorf Rudolf Steiner, em São Paulo, receberam uma aluna nova: Celeste, trans e em processo de transição.
Atravessar os muros da escola ainda é um desafio. E ainda que o jovem entre de mãos dadas com a família e a gestão escolar, muitos preconceitos e discriminações estão à espera. Agressões verbais, físicas e todo tipo de violência fazem com que 82% dos trans sejam passíveis de evasão escolar, segundo estudo da Ordem dos Advogados do Brasil, a OAB.
“A Celeste estudava numa escola onde sofria muito bullying. Eles tentaram, foram até onde deu, mas existe um desafio de enxergar a criança de forma integral, considerando seus vários aspectos: acadêmica-pedagógica, emocional-psicológica e social com família e amigos”, fala Claudia, mãe e publicitária. “Não dá pra ajudar ou formar uma criança olhando só um aspecto. E infelizmente hoje em dia, a maioria das escolas procuram focar em vestibular, Enem, currículo e deixam a balança desequilibrada”.
Num limite, a família foi buscar ajuda psicológica porque a própria adolescente tinha bloqueios e dificuldades em entender o que sentia. Até o dia em que conseguiu verbalizar que estava presa num corpo errado, “não gostava do que via no espelho, me sentia feia, desajeitada, insignificante, não via alegria em nada e queria ser uma menina” – todas palavras e sentimentos da Celeste que, na época, tinha 14 anos. “Neste momento o chão se abriu debaixo dos nossos pés”, relembra Claudia.
“A humilhação é sempre no coletivo e o apoio no privado. Preconceito, homofobia, transfobia em grupos de crianças e que se conhecem há tempos é comum. Mas a intolerância, a desinformação, a falta de empatia e talvez o medo de serem discriminados se mostrassem apoio, foi crucial para ela entender que era hora de dizer tchau”, explica Claudia.
“A escola tem valor central para a formação de sujeitos que se responsabilizarão ou se omitirão frente às desigualdades abissais a que estamos submetidos”, pontua Antonieta Megale, professora especialista em dilemas do século 21 e coordenadora do Instituto Singularidades. “É fundamental a defesa de uma proposta pedagógica de intervenção nessas questões. Caso isso não ocorra, a escola reproduzirá as discriminações, exclusões e violências existentes na sociedade. Não basta apenas receber estudantes trans e suas famílias, a escola deve se comprometer com a mudança social e com a transformação de preconceitos e discriminações”, reforça.
Antonieta sugere que, ao receber um aluno trans, a escola deve se engajar com a educação de toda a comunidade em relação a questões de gênero e “por que não também de sexualidade”. “Deve intervir não apenas em toda forma de discriminação, mas também no desenvolvimento de projetos pedagógicos que contemplem a temática. Esse trabalho deve envolver pesquisas, rodas de conversa e muito diálogo”.
O ponto principal, segundo Megale, é a compreensão de que o trabalho a ser realizado não é apenas com o estudante trans e a família, mas também, e principalmente, com toda a comunidade: estudantes, educadores, funcionários e famílias. A escola precisa mostrar clara e explicitamente sua intenção pedagógica no combate as desigualdades de gênero. O que sugere a escola que ações e inserções curriculares para a superação dessas questões devam estar garantidas no PPP (projeto político pedagógico) da escola.
Políticas públicas foram instituídas na tentativa de reverter este quadro. Em 2016, a presidenta Dilma Rousseff sancionou o decreto de número 8.727, garantindo o direito ao nome social, que se refere à designação pela qual a pessoa travesti ou transgênero se identifica e é socialmente reconhecida. Em 2018, uma portaria do MEC autorizou o uso do nome social nos registros escolares da educação básica.
A mudança de nome e o uso social do mesmo é uma das portas a serem abertas. Existem muitas outras e num ambiente escolar o uso dos espaços coletivos é outro enfrentamento. A primeira pergunta que se faz é: qual banheiro ela vai usar? Porque a pessoa que está em transição, que se apresenta como menino ou menina, tem no corpo órgãos do outro gênero e uma das maiores preocupações, principalmente de pais, é se o banheiro será usado junto do seu filho. Como se este adolescente, ou criança, heterossexual fosse sofrer algum tipo de violência pelo trans. Quando a maior violência, quem sofre, é o trans que precisa se submeter a tantos olhares e violências.
“O bullying mascara o preconceito. Muitas vezes o ambiente escolar fica competitivo e as crianças querem exercer dominância sobre outras e acabam criando situações de muita frustração e infelicidade. Ser o mais bonito, o mais esportivo, o mais rico, o mais inteligente, o mais descolado, o mais popular… o mais… qualquer coisa!”. E a Celeste lidou a vida inteira com o bullying, mesmo antes de se entender como trans. “Mesmo na época como um garoto tímido, estudioso e calmo, ela não se sentia pertencente a nenhum grupo. Era uma outsider. Não tinha nenhum amigo daqueles que te apoia em qualquer situação. Nós tentamos enfrentar, a escola antiga tentou dentro de suas limitações, mas não deu. As pessoas não querem mudar”, desabafa.
Diferente do senso comum de que somos um país acolhedor, a diversidade não é acolhida em nossa sociedade. A cada 19 horas 1 LGBT é assassinado no Brasil. A expectativa de vida é de 35 anos, ao contrário dos homens que têm expectativa de 72 anos e quase 80 para as mulheres, segundo dados do IBGE. Segundo pesquisa do MEC e da FIPE, 99,3% de crianças e adolescentes que foram entrevistados nas 18.600 escolas do Brasil, demonstram algum tipo de preconceito.
“Em nossa cultura, existe uma associação direta entre corpo, identidade de gênero, desejos e práticas sexuais. Há uma série de expectativas sociais sobre como mulheres e homens devem orientar suas identidades e suas ações. Quando essas expectativas não são correspondidas, temos observado tristemente agressões e violências sejam elas físicas ou psicológicas. Há inúmeros relatos de violência e exclusão que se configuram no principal motivo para que estudantes trans abandonem a escola”, complementa Antonieta Megale.
As questões todas que envolvem gênero permeiam o dia a dia das escolas. É algo concreto para ser olhado, e cuidado, cotidianamente. E não é preciso esperar que uma família com criança trans venha bater à sua porta. Basta olhar como as atividades, os brinquedos e os espaços são pensados pra acolher. Porque antes de ser menino ou menina, estamos falando de seres humanos.
E mesmo com toda a dureza do caminho, tiveram conquistas e vitórias. “Depois que a Celeste transicionou, passou a ficar mais forte, a entender que não tem que aceitar mais a humilhação, que ela tem direito de ser feliz sendo quem ela quiser ser”, conta. “Está aprendendo a dar um basta nas coisas que não acrescentam. Na escola nova tudo ainda é muito recente, mas ela se sente mais completa assumindo seu gênero e o nome social que escolheu. As pessoas que se aproximam já sabem quem ela é. Ela é trans e a escola a apoia”.
“Tudo que ela quer é uma chance de se desenvolver, de ter amigos, ser aceita e ter uma adolescência dentro da normalidade. Pelo menos por enquanto, começou a se sentir plena e bonita. Ganhou a chance de acreditar num futuro”.
“E a gente entendeu que se nossa filha não pudesse ser a Celeste, talvez ela não quisesse ser nada, não quisesse existir, não valeria a pena viver”.