Infectologistas apontam a necessidade de mais pesquisas para entender riscos; reabertura de escolas tem sido motivo de tensão pelo Brasil
O estudo da Universidade Harvard (EUA) que sugere alta carga viral e possibilidade maior de contágio da covid-19 entre crianças do que adultos foi recebido com cautela pelos cientistas brasileiros. Uma das razões é a restrição da amostra, o que não permitiria conclusões mais consistentes. Por outro lado, a pesquisa preocupa educadores, pois reafirma os riscos de contágio no momento do retorno das aulas presenciais.
Marco Aurélio Sáfadi, presidente do departamento científico de infectologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), afirma que os dados são insuficientes para definir as crianças como vetores importantes de transmissão. “Trata-se de um estudo pequeno. Ele sugere que as crianças possam desempenhar um papel importante como vetores, mas não comprova isso de maneira inequívoca. É preciso cautela na interpretação dos resultados”, diz ele, diretor do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.
O pediatra Renato Kfouri, presidente do Departamento Científico de Imunizações da SBP, afirma que o estudo é bem feito, mas vai na contramão de pesquisas anteriores. “Em relação ao número de casos confirmados por onde a pandemia passa, na China, Europa e Estados Unidos, as crianças com menos de dez anos de idade respondem por apenas 1% ou 2% dos casos diagnosticados”, avalia. “É um estudo a mais para a gente avaliar, mas clinicamente não é o que a gente vê muito.”
Mais importante do que analisar a carga viral de cada criança é acompanhar a experiência dos países que já reabriram as escolas. Essa é opinião do médico Fábio Jung, um dos autores de um estudo que analisou a reabertura em 15 países.
A Alemanha, por exemplo, conseguiu manter a tendência de queda dos casos. Lá, as medidas mais importantes foram a autoaplicação de testes pelos alunos, aferição de temperatura, distanciamento físico nas salas, higienização das mãos, uso de máscaras e álcool em gel.
Em Israel, houve alta de infectados em maio, após a reabertura dos colégios. Já na Suécia, por outro lado, escolas de educação infantil nunca fecharam e estudos sugerem que isso não se refletiu em contaminação elevada de professores.
Segundo ele, há evidências científicas de que, no caso do vírus da gripe, que não há correlação entre a carga viral, a quantidade de vírus medida pela via aérea do paciente, com a transmissibilidade. “A gripe é uma doença similar de vias aéreas similar ao coronavírus. Por outro lado, mapeamos 15 países que reabriram as escolas e não tiveram mudanças grandes nas curvas epidemiológicas”, diz Jung, formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com MBA em Finanças e Health Care Management na Wharton School.
Dificuldade de seguir protocolos de distanciamento vai desafiar colégios
Embora tenha sido recebido com cautela pelos cientistas, o estudo chamou a atenção dos especialistas que preparam o retorno às aulas por aqui. As aulas presenciais nas escolas particulares do Estado do Rio poderão ser retomadas a partir de 14 de setembro, e na rede pública, inclusive nas universidades, a partir de 5 de outubro.
Em São Paulo, a gestão Bruno Covas (PSDB) vetou a reabertura de escolas das redes pública e privada para atividades de reforço em setembro depois que um inquérito sorológico atestou que 64% dos casos foram assintomáticos. A retomada em outubro ainda é avaliada.
“Estamos nos organizando para o retorno na data definida pelo governo, mas ainda em dúvida, que só crescem com pesquisas como essa. Mas nossos protocolos estão de acordo com todas as recomendações oficiais”, afirma Wagner Cafagni Borja, diretor geral da escola Nossa Senhora das Graças, localizada no Itaim Bibi, zona sul de São Paulo.
O Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino no Estado de São Paulo (Sieeesp), que representa escolas particulares, afirma que o estudo não vai motivar um recuo da entidade, que entrou com um pedido de liminar contra a decisão da Prefeitura de São Paulo de não permitir a volta às aulas na capital paulista no dia 8 de setembro.
O governo paulista permitiu que cidades que estejam há 28 dias na fase amarela (nível intermediário no plano de flexibilização da quarentena no Estado) possam reabrir a partir dessa data, com oferta de atividades extras e de reforço. “Vi a pesquisa, como também já vi outras que divergem. A situação é controversa”, afirma Benjamin Ribeiro Silva, presidente do Sieesp.
O hematologista e patologista clínico Rafael Jácomo, diretor técnico do Laboratório Sabin de Análises Clínicas, que presta consultoria para diversos colégios na retomada das aulas presenciais, afirma que a transmissibilidade da covid-19 por crianças e jovens sempre foi tema de atenção.
“Qualquer serviço de consultoria que vise a avaliar riscos e dar orientações ao retorno às aulas presenciais tem de ponderar que, independentemente da discussão sobre a gravidade do quadro nas crianças, o convívio escolar é um fator de aumento de transmissibilidade, mesmo que transitório.” Colégios particulares têm contratado hospitais e laboratórios por até R$ 250 mil para criar planos de medidas sanitárias contra a covid-19.
Paralelamente aos últimos estudos científicos, três fatores preocupam a educadora Silvia Colello. “Não temos certeza se as escolas vão cumprir os protocolos mínimos. É difícil evitar o contato entre as crianças. Por fim, como elas podem ser transmissoras assintomáticas, existe um risco maior. É uma desestabilização do afastamento social que estamos enfrentando há tanto tempo”, diz a professora da pós-graduação da Faculdade de Educação da USP.
Do ponto de vista da aprendizagem, especialistas têm listado uma série de problemas ligados à aprendizagem, saúde mental e até nutrição diante da ausência de idas ao colégio.