Sociedade terá que definir se entrega educação a corporações ou se constrói nação em torno dela
Se decidirmos enfrentar uma nova realidade, precisaremos formar o professor para atuar em vários cenários e não só na sala de aula. Isso não significa “treinar o professor para dar aula on-line”, mas dar a ele habilidades de design e pedagogia em altíssimo nível para que possa transitar entre essas mídias com eficácia. Em mundo incerto e turbulento, a escola precisa ser vibrante e antenada, ou os jovens vão abandoná-la em ritmo ainda maior.
Ecoa traz na série O Mundo Pós-Covid-19 um grupo de especialistas que, em depoimento a jornalista Mariana Castro, contam como imaginam uma civilização pós-pandemia a partir de temas como Tecnologia, Trabalho, Educação, Ciência, Alimentação, Cidades, Novas Economias, Espiritualidade, Meio Ambiente e Comportamento. Além de desenhar possíveis cenários para o que vem depois, eles falam sobre como as escolhas de agora podem contribuir para a construção de um futuro mais desejável.
Em tempos de normalidade, nossa visão crítica perde o foco. Mas nas grandes crises passamos a ver mais claramente as etruturas que mantém nossas instituições de pé. E educação em tempos de pandemia tem nos revelado muito sobre nossos governantes, tecnologias, escolas e professores.
Os grandes heróis da educação remota não vieram do Vale do Silício ou do empreendedorismo. Foram nossos professores, que mesmo diante da falta de formação, infraestrutura, recursos e planos, fizeram o impossível para manter alunos engajados e aprendendo. As empresas de tecnologia e os empreendedores, ao contrário, decepcionaram (com honrosas exceções): produtos milagrosos, quando tiveram que finalmente funcionar para valer, ou fracassaram ou expuseram esquemas nada éticos de invasão de privacidade e falhas de segurança. O homeschooling – outro delírio que virou moda recentemente – se mostrou impraticável a não ser para famílias ricas.
Essa será, então, a primeira lição da educação pós-pandemia: na hora da verdade, quando tudo falha, quem sustenta a educação é o professor — e que isso nos sirva de lição para reconhecer o seu valor. Tardiamente, muitos perceberam que ensinar matemática para 40 crianças não é para amadores e nem hobby.
Outra lição é que a tecnologia educacional só funciona dentro de um ecossistema coerente que inclui todos os atores da educação. Tecnologia por si só não resolve nada, assim como o estetoscópio do médico e o violão do músico. Sem a estrutura da escola e bons professores, a vida educacional das crianças desmorona, mesmo com smartphones, inteligência artificial, tablets e computadores.
A terceira lição, que foi surpresa para muitos pais, é sobre o que é ensinado nas escolas. Para a maioria dos alunos, a escola é uma tortura burocrática, uma máquina de competição, provas e “cobrir a matéria”, que vão do nada para lugar nenhum. Isso não é novidade, mas muitos pais nunca tinham visto o fenômeno em primeira pessoa: o sofrimento de uma criança ao decorar um procedimento matemático sem entender para que serve.
“Nossa espécie se descobriu vulnerável. Isso impacta a educação, porque muda o conteúdo e a visão de mundo daqui em diante”
A quarta lição foi sobre a nossa fragilidade. Nossa indestrutível e orgulhosa espécie se descobriu vulnerável. Assustados, percebemos que nem toda a tecnologia do mundo nos salva de um pequeno vírus. Isso impacta a educação, porque muda a visão de mundo e o conteúdo que é relevante ensinar.
Mas ainda não sabemos se essas lições vão trazer mudanças. Futuristas de plantão oferecerem uma abundância de cenários, mas a verdade é que muitas crises não deixam legado positivo. Exauridas, as pessoas pós-pandemia podem simplesmente querer suas vidas antigas de volta. Mas muitos agora entendem que uma emergência global – seja epidemiológica ou climática – pode ocorrer a qualquer momento.
Se decidirmos enfrentar essa nova realidade, a educação precisará mudar. Em primeiro lugar, vamos precisar formar o professor para atuar em vários cenários e mídias, e não apenas na sala de aula. Isso não significa “treinar o professor para dar aula online”, mas dar a ele habilidades de design e pedagogia em altíssimo nível para que possa transitar entre essas mídias com eficácia.
Precisaremos também mudar radicalmente a forma de construção de bases curriculares e currículos, dando-lhes mais agilidade e conexão com o mundo atual. Bases curriculares que não mudam por décadas estão com os dias contados: um currículo de ciências escrito em dezembro de 2019 está, hoje, obsoleto.
Vamos precisar também desenvolver tecnologias de baixo custo que deem conta de reduzir a inequidade de acesso e participação. Internet deve ser necessidade básica. Temos que inventar computadores de baixo custo e kits de ciências e robótica compatíveis com a estrutura de nossas escolas.
“A emoção de ver uma criança apaixonada por aprender mostrará que, de todos os possíveis projetos de nação, a educação é o mais importante”
Finalmente, no mundo pós-Covid-19 teremos que fazer a escola mais interessante e motivante, como queria Paulo Freire. Num mundo incerto e turbulento, a escola precisa ser vibrante, motivante, antenada, mobilizada – ou os jovens vão abandoná-la em ritmo ainda maior.
No final das contas, há dois possíveis legados que a pandemia pode deixar para a educação. E a escolha depende de nós. Um possível legado será desistir da educação pública como componente de uma sociedade democrática saudável. Depois de meses sem escola, vamos entregar tudo (de forma aberta ou disfarçada) para corporações, empresas de tecnologia e sistemas de ensino.
Mas há outro legado possível: pensar na educação não apenas como uma prioridade, mas como um projeto de país. Lembremos a Finlândia ou a cidade de Sobral, no Ceará. Nos dois casos, a educação é uma construção cuidadosa de décadas, em que a sociedade e o poder público juntam forças e fazem de suas escolas o seu maior projeto de cidadania. É difícil, custa caro, requer mudanças de prioridades. Mas vá a Sobral e converse com um aluno da rede municipal, como eu fiz várias vezes. A emoção de ver uma criança apaixonada por aprender vai mostrar que, de todos os possíveis projetos de nação, esse é o mais importante.
Paulo Blikstein
Professor na Universidade de Columbia, mestre pelo MIT Media Lab e Doutor em Educação pela Northwestern University. Foi professor na Universidade de Stanford