A crise disparada pelo coronavírus fechou escolas e obrigou uma migração forçada, realizada com maior ou menor sucesso, para modalidades de ensino remoto. Um ano e meio depois do início da pandemia, é possível dizer que a educação se transformou efetivamente? Para Paulo Blikstein, especialista em educação e ciência da computação, ainda não. “O que se digitalizou foi a escola tradicional. Os computadores não devem ser utilizados apenas para se assistir aulas”, defende. Professor no Teachers College da Universidade de Columbia e diretor do Transformative Learning Technologies Lab, Blikstein é um dos autores do relatório Tecnologias para uma educação com equidade, que traz propostas para o uso da tecnologia a serviço da aprendizagem.
O documento aponta um longo caminho a percorrer, com carências em quatro pontos essenciais: infraestrutura, formação de profissionais, proteção de dados e política nacional para a tecnologia educacional. Na priorização das ações, atenção especial ao professor — que “precisa entender como usar a tecnologia para redesenhar suas aulas” — e à necessidade de um novo profissional na escola: um professor de tecnologia, “pela auxiliar os docentes de todas as disciplinas a trabalhar com o tema”. Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida à coluna.
Em termos do uso da tecnologia na educação, no que o Brasil avançou e no que falta avançar?
Paulo Blikstein: Houve avanços principalmente na conectividade. As pessoas têm mais acesso à internet de modo geral, algo que aconteceu fora da escola, mas que também traz benefícios à educação. A banda larga segue sendo um problema. Tem escolas instalando banda larga residencial, suficiente somente para atividades administrativas. Oferecer banda larga de verdade, que permite que centenas de alunos façam atividades pedagógicas, é uma outra coisa. Isso porque a maioria dos softwares educacionais hoje roda na nuvem, não são para baixar no computador.
E quanto à presença da tecnologia nos currículos?
Se você perguntar para gestores da educação, todos estão pensando em ter um espaço maker, oferecer aulas de programação e assim por diante. Avançamos na aceitação dessa ideia, mas ainda estamos muito longe da universalização. A gente tem nas escolas de elite, em parte das particulares e em alguns sistemas públicos. Mas ainda é muito pouco. O relatório aponta que as redes de ensino devem apoiar os professores contratando apoiadores e facilitadores em tecnologia educacional. Esse é um atalho para trazer de forma qualificada a tecnologia para dentro das escolas?
Tem tanta tecnologia educacional – realidade virtual, espaço maker, programação, videoaula – que é irreal você achar que vai formar o professor em todas essas tecnologias e atualizá-lo à medida que essas tecnologias vão se atualizando. Essa ideia de que o professor vai ter de saber dessas inúmeras tecnologias – além de dar aula – é irreal. O que eu defendo é que o professor precisa ter uma formação para entender como usar a tecnologia para redesenhar suas aulas. Mas pela complexidade da tecnologia, a escola tem que ter um novo professor: um professor de Tecnologia. É ele quem vai trabalhar junto com os professores de outras disciplinas para criar novos currículos que usem tecnologia.
Ainda há temor de que a tecnologia venha a substituir os professores. Isso faz sentido?
O que a inteligência artificial consegue fazer hoje em dia é relativamente simples. São tarefas incomparáveis com o que um professor faz em sala de aula. Esses sistemas estão longe de substituir a complexidade do trabalho humano nessas áreas. O avanço é lento. Mesmo se você pensar em áreas muito mais simples, como, por exemplo, dirigir um carro – que é muito mais previsível do que dar uma aula para 40 crianças -, nem mesmo bilhões de dólares foram suficientes para criar um automóvel completamente autodirigível. Estamos muito longe de ter qualquer coisa que vá substituir o professor. Precisamos investir nele. O professor é o personagem que entrega a educação. Ele pode ter o seu trabalho muito melhorado com novas tecnologias.
Como você avalia o fato de que, durante a pandemia, a maior parte dos alunos precisou assistir aulas remotas pelo celular ou em ambientes sem possibilidade de concentração?
Cada tipo de dispositivo tem um uso mais apropriado. Por exemplo, quando você está nas redes sociais, os usos são mais curtos. Você está no ônibus, no carro, no metrô e olha o Facebook ou liga para alguém. Essas atividades exigem uma atenção relativamente pequena, eventualmente dá para fazer outras coisas ao mesmo tempo. Se você é interrompido, não é um grande problema porque você pode continuar depois.
O aprendizado não funciona desse jeito. Você começa a assistir uma aula de Matemática no ônibus e de repente precisa parar porque não tem onde escrever ou porque chegou no seu destino. O aprendizado das diferentes disciplinas da escola tem uma outra dinâmica. Precisa, por exemplo, de concentração, de um espaço apropriado, continuidade, apoio de pessoas mais experientes, blocos de tempo de tamanho mínimo para que você possa se engajar com as atividades de forma produtiva, recursos adequados para tomar notas, digitar, registrar raciocínios e construir textos.
Com a disseminação da educação online, parece haver um entendimento que a escola já se digitalizou. Você concorda?
O que se digitalizou foi a escola tradicional. Não se desenvolveu um modelo que explore o potencial da rede e da inteligência coletiva. Eu acho que a utopia de verdade é conectar as pessoas para fazerem coisas juntas e não simplesmente assistirem a aulas eletrônicas. Outra questão é a tecnologia como caixa preta. Você não pode só usar os computadores para assistir às aulas. Você tem que abrir o computador, ver o que tem dentro, construir seus próprios computadores, robôs, etc. Quando você faz uma aula de Artes, você não vai só no museu ficar olhando a arte que já está pronta. Você vai pintar, esculpir, desenhar com as crianças. Quebrar essa caixa preta está intimamente ligado a não ficar só contemplando a tecnologia, mas você olhar o que tem dentro e criar por conta própria. É nesse momento da construção que você entende como a coisa funciona.
Isso vale para coisas complexas como inteligência artificial?
Hoje em dia já existem softwares educacionais para crianças criarem inteligência artificial. É o melhor jeito de entender oque está por trás das redes sociais, das ferramentas de reconhecimento facial e de uma série de outras coisas que são opressivas. Se a criança é só usuária, se ela só senta e faz o login no sistema de aula eletrônica. Não está quebrando a caixa preta.
Há um certo conformismo da escola com a internet dominada por corporações?
O grande problema é que essas empresas estão também tomando conta dos sistemas públicos de educação. Muitas secretarias são abordadas por empresas oferecendo um serviço gratuito de gerenciamento de sala de aula, aulas em vídeo ou algo semelhante. O secretário de educação aceita, pois a escola de fato necessita. O que temos estudado é que, quando você oferece um serviço de graça para uma secretaria, o rigor legal dos contratos é muito menor, não passa pelas instâncias de verificação legal. Acaba-se pagando com dados dos alunos. Há ainda um tipo de publicidade infantil, porque você está condicionando as crianças a usarem um software possivelmente para a vida toda. Isso tem um valor enorme para as empresas. Destaco também o fato de que muitas dessas empresas acabam sendo vendidas, transferidas e compradas por outras. Os dados vão se perdendo nessa rede de dependências empresariais. No fim, você nem sabe em que país eles estão. Em alguns casos, não há nem instrumento legal para acionar certas empresas.
Ainda há tempo para o Brasil pegar o bonde da tecnologia?
Sim. Muitos países que inventaram uma tecnologia não são os países que se beneficiam necessariamente dela. Por exemplo, a fotografia foi inventada na Alemanha, mas quem mais se beneficiou foram Japão e Estados Unidos. As tecnologias automobilística foram inventadas na Europa, mas o Japão é que construiu a maior e mais moderna indústria automobilística do mundo. A mesma coisa com a tecnologia. A China não inventou a inteligência artificial, mas está erguendo centros de pesquisa em inteligência artificial em todos os cantos do país, pegando os doutores que se formam nos Estados Unidos e atraindo para lá. Eu acho que é sempre tempo da gente se apropriar, até um pouco antropofagicamente , dessas tecnologias e criar uma versão brasileira a partir de um plano estratégico.