Piaget explica o bolsonarismo?

Piaget explica o bolsonarismo?

Adepto é ávido aprendiz que constrói conhecimento por conta própria.

Matéria publicada pela Folha de São Paulo em 27/10/2022

Paulo Blikstein – Professor na Escola de Educação e professor afiliado no Departamento de Ciência da Computação da Universidade Columbia (EUA); diretor do Transformative Learning Technologies Lab (TLTLab.org) e do Lemann Center for Brazilian Studies.

Renato Russo – Doutorando na Escola de Educação da Universidade Columbia (EUA) e pesquisador no TLTL.

O cientista cognitivo suíço Jean Piaget (1896-1980) nos ensinou que não há nada mais resiliente que uma teoria que criamos por conta própria. Narrativas e histórias são poderosas, mas lhe faltam uma propriedade crucial: quando criamos teorias, nos sentimos inteligentes e intelectualmente capazes.

Propomos que esse prazer em teorizar e aprender —comprovado pela neurociência há décadas— está muito ligado à comunicação política atual.

As fake news explicam parte das campanhas eleitorais, mas não tudo. Acreditamos em uma explicação alternativa: o eleitor da extrema direita é sobretudo um teorista e um ávido aprendiz que constrói conhecimento por conta própria.

Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro durante ato na avenida Paulista, em São Paulo

Steve Bannon, estrategista de Donald Trump, e não por acaso diretor de 19 documentários, entendeu isso claramente: em vez de seduzir ou convencer o eleitor, faça dele um aprendiz, ajude-o a ver “por trás” das aparências e “o que a mídia não mostra”, estimule-o a fazer sua própria pesquisa e chegar às suas conclusões. Bannon e seus discípulos brasileiros estruturaram um tipo de propaganda que não impõe a “verdade” de uma vez só, mas estrategicamente espalha em mídias sociais pequenos pedaços de meias verdades que são depois reconstruídos —como teorias inabaláveis— nas cabeças dos eleitores. Líderes aparecem e somem, narrativas duram semanas, mas essas teorias “aprendidas por conta própria” podem resistir por décadas.

Desde 2019 pesquisamos essas estratégias de “ensino” da extrema direita, e os dados são surpreendentes. Diferentemente do imaginário progressista, a adesão à direita antidemocrática não é sempre irracional. Os marqueteiros online mais sofisticados não enunciam que “governos de esquerda sempre terminam como o da Venezuela”, ou que “educação sexual corrompe as crianças”. Eles mostram exemplos, fazem perguntas, descrevem casos. O eleitor nota padrões, enxerga paralelos, tira suas conclusões e se sente confiante por ter aprendido.

Steve Bannon e Eduardo Bolsonaro durante encontro na Flórida
Steve Bannon e o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) durante encontro na Flórida – Reprodução/Twitter

Em nossos dados, encontramos frequentemente frases como “eu mudei minha cabeça com o YouTube”; “eu entendo melhor o mundo agora”; “as lives explicam o que acontece na política” (grifos nossos). Os termos que grifamos estão associados ao conhecimento, não à ignorância. A construção de teorias não requer que elas estejam corretas, basta que as peças se encaixem de forma satisfatória, gerando o prazer de estar vendo “mais longe”. Uma vez consolidadas, mesmo dentro de princípios delirantes, racistas, sexistas, homofóbicos e desprezíveis, torna-se difícil desconstruí-las —especialmente se o aprendiz é bombardeado diariamente por pílulas confirmatórias, explorando o poderoso viés de confirmação inerente à cognição humana. Essa fórmula tem funcionado como um relógio, e é esse o nó que precisamos desatar.PUBLICIDADE

A desconstrução dessas teorias será uma tarefa de anos, ou décadas, em que teremos que vestir a camisa de educadores e pacientemente oferecer teorias que explicam o mundo de forma mais coerente e ética. Não será trabalho para uma eleição, mas para uma geração.

E para mudar teorias (e votos), nesta semana e nos próximos anos, precisamos compreender o eleitor não radical e indeciso como um ávido aprendiz. Para explorar falhas nas teorias espúrias propagadas online, em vez de apresentar mensagens prontas, faça perguntas, mostre que um caso isolado ou extremo não pode ser transformado em regra. Alerte para o viés de confirmação, cocrie teorias explicativas mais sutis, encontre limitações nas atuais, busque mais dados. O propósito não é substituir uma teoria por outra, mas mostrar que o processo de aprendizado nas redes da extrema direita é viciado e teleguiado, e que aprender fora delas é mais rico, interessante e recompensador. Em outras palavras, o eleitor precisa desaprender a aprender no ecossistema fechado da extrema direita.

Isso nem sempre vai funcionar. Mas cada milímetro de mudança será um passo quilométrico na reconstrução civilizatória —e uma pequena homenagem àquele que acreditou na aprendizagem como força fundamental para a emancipação: nosso mestre, Paulo Freire.