Racismo de crianças leva pais a exigir diversidade nas escolas de elite
Matéria publicada em 28/11/2022 no UOL –
Cinthia Rodrigues
Colaboração para o TAB, de São Paulo
28/11/2022 04h01
“Chocolate” foi o nome que Maria Helena, 6, deu à cor que ela inventou. Havia colocado a mãozinha ao lado do papel com a mistura de marrom, amarelo e rosa e confirmou: parecia bastante seu tom de pele. Foi, inclusive, a primeira a entregar a lição naquela turma do último ano do infantil do Colégio Vera Cruz, em São Paulo. Uma hora depois, diante dos nomes que seus colegas deram às suas próprias cores, ficou insegura e quis trocar.
Na mesma atividade, a professora auxiliar Thatiany Cândido, 35, também negra — que teve seu tom de pele mais claro definido como “lama” por outra criança — puxou Maria Helena de canto. E disse, olhos no olhos: “Você não tem que fazer como seus amigos. Você pode se sair tão bem quanto eles. E, nesse caso, você se saiu até melhor”.
As protagonistas da cena acima — uma aula sobre tons de pele e a conversa sobre autoestima, professora e aluna negras — são novidade nesta escola de elite, no bairro paulistano Alto de Pinheiros. A pedido das próprias famílias brancas, que nos últimos anos passaram a se sentir desconfortáveis com a falta de diversidade, o Vera Cruz — assim como muitas outras escolas no país — começou em 2020 a “trazer para o cotidiano corpos e conteúdos negros”.
Em síntese, o projeto oferece duas bolsas integrais por turma fechada no último ano do infantil (a bolsa acompanhará o cotista até o ensino médio), prevê a contratação de equipe que privilegie negros e propõe a discussão de temas relacionados ao racismo em sala de aula, além de outras ações afirmativas.
A preocupação expressa pelos pais era seguida de relatos em que seus filhos pequenos, imersos nas bolhas mais privilegiadas da sociedade, manifestavam estranhamento em relação ao tom de pele de outras crianças ou adultos — isso quando não verbalizavam explícitamente alguma fala racista.
O projeto chega às escolas privadas com atraso de quase duas décadas: desde 2003, a lei 10.639 estabelece a valorização da cultura e história afro-brasileira em sala de aula. “A falta de letramento racial é uma das bases para episódios de racismo como vimos no pós-eleição”, afirma Juliana de Paula Costa, 32, pedagoga e uma das criadoras do projeto Pisar Nesse Chão Devagarinho, que presta assessoria a escolas em projetos antirracistas.
“Finalmente”, comemora a especialista Clélia Rosa, 47, uma das consultoras do programa do Vera Cruz e do tradicional colégio Santa Cruz, que também passou a ter dois alunos bolsistas por turma de ensino infantil, a partir de 2022, e do Gracinha, em que Rosa ocupa cargo fixo como assessora de equidade racial.
“Vejo como positivo o movimento, mas é preciso ressaltar o tempo que levou para que essas instituições formadoras da elite branca dessem esse passo de reparação histórica.”
‘Escola muito branca’
Angela Fontana, 63, coordenadora da unidade onde chegam os bolsistas do Vera Cruz, entre o fim do infantil e o começo do ensino fundamental, também fala dessa demora. “Antes a gente tratava o assunto naquela linha absurda de que ‘somos todos iguais’. É difícil se reconhecer racista”, afirma.
A mudança ocorreu depois de um encontro formativo da equipe com as famílias, em 2019. O racismo era tratado com o distanciamento usual, até que uma mãe questionou quando o filho veria negros na escola, sem estarem em posição de serviçais. A causa foi abraçada por boa parte da comunidade, que passou a exigir representatividade — tanto entre os estudantes quanto no corpo docente, para que as crianças tivessem contato desde cedo com pessoas negras em lugar de destaque.
“Sempre achei a escola muito branca, mas não encontrava eco nos comentários com outros pais”, conta uma dessas mães, a editora e tradutora Caroline Chang, 45. Para ela, a motivação é que a filha, que está no Vera Cruz desde os 2 anos e tem agora 10, tenha acesso a uma cultura que ela não teve.
Apesar do empenho da família, o efeito da bolha ainda é percebido no cotidiano. “Outro dia, minha filha lamentava um preconceito e disse: ‘pelo menos existem poucos negros no Brasil'”, conta Caroline, que se deu conta do tamanho da diferença entre a realidade do país e o mundo experimentado pela filha.
A Disney fica longe
No grupo da estudante Maria Helena, que abre esta reportagem, os únicos três negros são bolsistas e esta é a regra na maioria das escolas. No 1º ano do ensino fundamental, Maria Manuela é uma destas crianças. Ela tem quase dois anos de Vera Cruz e diz que está “quase acostumando”. Gosta da areia e das brincadeiras, mas ainda tem saudade dos amigos e da “tia” da escola antiga, uma pequena instituição particular que ficava mais próxima do trabalho da mãe, que podia visitá-la no meio do dia.
Além de vaga garantida até o ensino médio, os bolsistas têm direito a uniforme, alimentação e auxílio para saídas pedagógicas — uma tentativa de amenizar as diferenças de classe social que fatalmente aparecem. Maria Manuela já perguntou à mãe, por exemplo, quando elas poderiam ir à Disney como suas coleguinhas que passam férias no exterior.
Diariamente, Manuela sai do Vera Cruz e vai de perua escolar até um CCA (Centro para Crianças e Adolescentes), um contraturno da prefeitura de São Paulo. Lá, convive com estudantes de escolas públicas até a hora em que a mãe, professora da rede conveniada municipal, termine a sua jornada e possa buscá-la.
Ao ouvir isso, uma das colegas brancas comenta que vai perguntar à própria mãe se pode ir de perua no ano que vem. Ela chega de carro todos os dias, mas não gosta quando a mãe não pode apanhá-la e a babá é que vem. “Você gosta da perua?”, pergunta a amiga à Maria Manuela, que responde levantando os ombros.
Distância intransponível
A mãe de Maria Manuela, Elisângela Evangelista da Silva, 47, está muito satisfeita com a bolsa até o ensino médio. “Fui ver pela qualidade da escola, mas tinha insegurança por saber que seria uma escola majoritariamente branca. Quando soube do projeto antirracista e que as famílias é que tinham pedido, fiquei emocionada”, conta.
“Sei que questões de racismo vão aparecer, mas vão ser tratadas. Lá ela não vai passar pelo que eu e meus mais velhos passaram.” Nem sempre, no entanto, isso acontece. Em outra escola progressista de educação infantil e fundamental, no bairro da Água Branca, a comissão antirracista foi destituída e refeita, depois que a comunidade não soube lidar com um episódio de racismo na escola.
A pedagoga Juliana de Paula Costa alerta que só conceder bolsas não é suficiente, e pode criar traumas. “Antes da política afirmativa é preciso implementar a lei e atualizar o currículo. Se não, alivia-se a culpa branca, mas a criança negra fica sujeita ao mesmo racismo traumático”, afirma.
Ela conta que em espaços sem ações antirracistas é comum as crianças brancas se sentirem superiores aos adultos negros e já ouviu mais de uma professora ser chamada de “macaca” por um estudante. “Cada escola é um caso e a gente só pode avaliar se a política está dando certo no médio prazo, comparando como estava o grupo antes e como ficou depois.”
Frustração com os critérios
O relato da família bolsista e a disseminação da proposta em outros colégios de elite fizeram com que uma amiga de Elisângela, a assistente social Myrna Gugani, 38, também inscrevesse seu filho, Felipe, 4, em programas do tipo — entre eles, o do Vera Cruz e o do Santa Cruz. O menino, no entanto, foi barrado pelo critério de distância, pois os pais moram em Pirituba, na zona norte de São Paulo.
Myrna ficou particularmente frustrada pela recusa dos colégios do Alto de Pinheiros, porque, embora more longe, mantêm fortes vínculos com a região. Atualmente, a perua escolar pega Felipe no trabalho dela, na Vila Leopoldina, a menos de 3 quilômetros de distância daquelas escolas. Myrna é ainda conselheira do Parque Villa-Lobos, no mesmo bairro.
“Vivo aqui, só que minha renda não me permite morar [aqui] e isso me leva a perder esta oportunidade que parecia feita para ele. Fiquei muito frustrada”, lamenta.
Dos 70 inscritos no Vera Cruz para 2023, menos da metade preencheu os critérios para a seleção, que são morar até 6 km da escola e ter baixa renda per capita familiar comprovada.
A opção da escola pública
Nas escolas públicas, onde a lei que estabelece a valorização da cultura e história afro-brasileira é aplicada há mais tempo, uma das experiências mais exitosas foi registrada no livro “Vozes da Emei Nelson Mandela“, que retrata 15 anos de práticas antirracistas na escola.
A autora, Cibele Racy, foi diretora na unidade de 2004 até sua aposentadoria, em 2020, e se tornou referência internacional, chegando a figurar na lista das 100 Mulheres Mais Influentes do Mundo da BBC, emissora pública britânica, por sua prática antirracista.
Para ela, é muito difícil um projeto antirracista ser bem sucedido dentro de uma bolha social. “As pessoas acham que basta inserir bolsistas e a cultura negra. Não adianta”, argumenta. “Trazer nomes da música e representatividade só reforçam o mito da democracia racial”, diz Racy, em referência à ideia defendida pelo antropólogo e historiador pernambucano Gilberto Freyre de que a cultura brasileira encontrou uma forma positiva de convivência interracial.
“É preciso falar de responsabilidade e reparar a injustiça com o negro que está limpando o banheiro. Alguém está disposto a isso?”, questiona a autora.
Na opinião dela, brancos e pessoas em posição de poder deveriam apoiar a causa antirracista no espaço coletivo da escola pública — e levar seus filhos para conviver num ambiente em que os negros são a metade da comunidade. “Há uma violência em separar o negro de seus iguais”, afirma, relatando caso ocorrido há alguns anos, quando o professor de um colégio particular com um único aluno negro visitou a EMEI Nelson Mandela com sua turma.
“O menino era mais velho e foi prontamente acolhido e admirado pelos nossos pequenos. O professor chorou, pois nunca havia visto seu aluno sorrir e percebeu que não podia fazer aquilo na sua escola”, conta ela.
A maior diversidade, entretanto, não livra a escola pública do racismo. A consultora Clélia Rosa, que atuou também na rede municipal, comenta que embora o tema lá seja tratado há mais tempo e com lugar de fala, ainda há gestores e professores autoritários e assistencialistas. “Não tem nada resolvido, é preciso atenção o tempo todo.”
Embora tenha condições de matricular as filhas em instituições particulares, ela optou por mantê-las na escola pública. “É uma decisão que estou sempre revendo”, admite. “Escolho pelos espaços e pela diversidade, mas entendo também quem opta por bolsa, por vislumbrar uma oportunidade maior de ascensão”, diz.
Pichação nazista
Angela Fontana, coordenadora do Vera Cruz, conta que desde a implementação do projeto famílias vítimas de racismo em outras escolas passaram a procurar a instituição. “Não queremos fazer disso um produto, mas acontece de famílias de estudantes negros pagantes conhecerem o projeto e virem para cá”, diz.
O projeto tem hoje 400 doadores entre familiares, ex-alunos e funcionários, que financiam uma bolsa a mais, além das duas garantidas pela própria instituição para cada turma. “Mais ou menos metade da escola apoia”, calcula.
Uma conta rápida sobre os novos ingressantes pode sugerir também o contrário, já que houve diminuição do número de estudantes. Enquanto em 2022 são seis as turmas do G5, como é chamada a série do infantil em que ingressam os bolsistas, para 2023 estão previstas apenas quatro. “Isso é reflexo da pandemia. Dois anos atrás entraram menos crianças de 2, 3 anos e agora chegam menos crianças a nossa unidade”, rebate ela, que não acredita em uma ligação direta entre o projeto de educação antirracista e a baixa na procura da escola.
Para Cibele Racy, é inegável que apesar dos avanços a educação antirracista também enfrenta uma reação. E lembra que, na Nelson Mandela, em 2011, uma pichação no muro com a frase “vamos cuidar de nossas crianças brancas”, junto com uma suástica nazista, impactou professores e alunos — e foi o que fez mudar o nome da escola. “Isso serviu para assumirmos que o racismo ainda é forte e sermos mais combativas.”