Como ensinar organização para crianças
Matéria publicada pela Revista Gama (UOL) em 21/05/2023
Tropeçar em pecinhas de Lego na cozinha, encontrar um pé de meia no sofá ou se deparar com o uniforme escolar do pequeno espalhado pela sala; achar aquele documento importante do trabalho bem no meio da cesta de brinquedos, avistar a chave do carro dentro da fruteira. Cenas como essas fazem parte do cotidiano de um lar habitado por adultos com filhos.
Se até Marie Kondo, rainha da organização, dona de um método inovador que prega o desapego (mas com amor!) e cada coisa em seu lugar, confessou que vive uma fase de caos, então, está tudo bem em aceitar que um tanto de desorganização faz parte de algumas conjunturas da vida. “Minha casa é uma bagunça”, revelou a japonesa ao jornal Washington Post no início de 2023. Ela contou à publicação que, no momento, desistiu de manter a ordem e que essa atitude foi boa. “Percebi agora que o importante para mim é aproveitar o tempo em casa com meus filhos.”
Mas, apesar de ser uma tarefa árdua, não é uma utopia conseguir manter certa disciplina organizacional (cada família sabe a sua, o seu mínimo viável), na medida do possível, e, de quebra, ensinar organização para as crianças. Para Carlota Boto, diretora da Faculdade de Educação da USP, onde leciona filosofia da educação, arrumar as próprias coisas “constitui uma maneira de organizar o espírito e de colocar ordem na vida”.
De acordo com a professora, a organização infantil leva à estruturação da autodisciplina, o que favorece a autonomia necessária para a formação das crianças.
Angela Di Paolo, doutora e mestre em psicologia escolar e do desenvolvimento humano pela USP e docente do curso de pedagogia do Instituto Singularidades, explica que desde cedo uma criança consegue fazer pequenas ações sozinha, de forma independente, contando com algumas ferramentas que, organizadas, ajudam na mobilidade infantil.
“Um espaço que tenha o mobiliário na altura da criança, como cama, estante com livros, mesa e cadeira, para que ela consiga se sentar, levantar, abaixar, pegar, entrar e sair sozinha, favorece a movimentação autônoma, que não depende tanto do adulto”, conta.
Metodologia montessoriana
Essas falas das especialistas em educação ouvidas pela Gama partem de uma base comum: o método do Montessori, desenvolvido no século 20 pela médica e pedagoga italiana Maria Montessori (1870-1952). A metodologia é fundamentada no estímulo à autonomia e à liberdade individual da criança, considerando os limites do desenvolvimento natural das habilidades físicas, psicológicas e sociais, além de incentivar a concentração e a repetição de exercícios.
A organização do quarto das crianças e a participação delas na tarefa de colocar em ordem os próprios brinquedos é um aspecto essencial
O princípio do método, segundo Boto, é a criança contribuir para a própria educação. “Montessori dizia da necessidade de a criança se educar por si mesma, cabendo ao adulto observar e favorecer o contato da criança com o ambiente. Para Montessori, os materiais também são um fator determinante para educar. Nesse sentido, estruturar o ambiente, de modo que a criança possa organizá-lo, é fundamental. Para os pais, a organização do quarto das crianças e a participação delas na tarefa de colocar em ordem os próprios brinquedos é um aspecto essencial”, elucida.
A abordagem montessoriana também prega pelas vivências sensoriais dos pequeninos. “Montessori falava que a criança aprende pelas mãos. Então, é importante que a criança passe primeiro por uma experiência concreta e sensorial, para depois descobrir o pensamento mais abstrato”, explana Di Paolo.
Para contribuir com esse aspecto, há alguns utensílios que podem ser úteis, como a torre de aprendizagem montessoriana. Embora tenha a marca da educadora no nome, o material não foi criado por Maria Montessori, mas, sim, a partir dos conceitos desenvolvidos por ela. Trata-se de um móvel de madeira que permite à criança de até 4 anos chegar, de forma segura, às superfícies da cozinha e da sala, como pias, bancadas e mesas, para participar da realização de tarefas do dia a dia, tais como lavar a louça, picar alimentos ou colocar a mesa do jantar.
O método Montessori também preza pelo cuidado com o espaço que, por sua vez, passa pela organização, conforme assegura Di Paolo. “A criança, por exemplo, mora numa casa com irmãos, pais e avós, então, é necessário que ela aprenda a organizar um espaço com os seus pertences, seus objetos: usou, depois guarda, sujou, caiu um pouco de água, depois, limpa, pega um pano, uma vassoura pequena, uma pá menorzinha para varrer o lixo.”
A profissional afirma que, geralmente, esses ensinamentos podem ser iniciados aos dois anos. “É uma construção, óbvio, mas essa idade é um marco. Uma criança de dois anos já tem condições de entender, de pegar um papelzinho e limpar algo”, exemplifica.
Di Paolo ressalta, contudo, que ações como limpar o que sujou e guardar o que usou não devem ser vistas ou pedidas como forma de punição. “É mais pelo cuidado da criança compreender que aquele espaço, aquela mesa, aquela comida, são compartilhados com outras pessoas, então, se ela sujou, ela vai limpar para que os outros também possam utilizar.”
A organização possível
Lua Barros, educadora parental e autora do livro “Eu Não Nasci Mãe” (Editora Nacional, 2020), lembra, no entanto, que é importante dosar a expectativa do que se espera de cada criança em relação à organização. Ela diz que pais, mães e cuidadores precisam enxergar o que os pequenos são capazes de responder cognitivamente com base em cada faixa etária. “Não dá para achar que com dois ou três anos de idade a criança já vai conseguir organizar os brinquedos minuciosamente por cor e tamanho. Atenção com o que você está esperando do seu filho; a régua da criança não é a nossa.”
Outro ponto que Barros destaca é que os responsáveis pelas crianças não devem se cobrar (ou exigir de filhos e filhas) uma organização impecável porque no cotidiano corrido nem sempre ela é possível ou a coisa mais importante da rotina de uma família.
Mãe de quatro, Barros conta que cada filho faz em casa, no quesito organizacional, o que dá, de acordo com a idade e com o perfil. João, o mais velho, é quem mais lava louça, por exemplo. Para Joaquim, de cinco anos, ela se disponibilizou a ajudá-lo a entender qual era a organização que estava pedindo.
A gente organiza o que consegue. Às vezes, não vai ser a casa, às vezes, vai ser a alma e está tudo bem
“Durante um longo período, eu guardava junto com o Joaquim os brinquedos no cesto. Assim, depois desse tempão, eu não precisava mais gritar da sala o que ele deveria arrumar no quarto. Também tenho duas meninas, uma de nove e uma de dez, e toda semana tenho de pedir para que arrumem o guarda-roupa, que é um ninho de ratos [risos]. Elas organizam, mas numa lógica própria que jamais seria a minha, porém, as duas se entendem ali, naquela bagunça organizada”, garante.
Barros salienta que é fundamental também olhar para a questão de gênero dentro desse tema. “Gostamos de repetir que meninas são mais ligadas à organização que os meninos, mas isso é uma construção social, uma performance de gênero, que só perpetua as coisas como elas são. Em uma casa, todos precisam estar implicados nos cuidados e na organização, para não sobrecarregar a mãe, que é quase sempre quem puxa essa tarefa. Fazer coletivamente e ir estipulando as tarefas de organização da casa para os filhos é uma forma de contribuir para a formação de homens e mulheres que sabem das suas responsabilidades domésticas.”
Ela finaliza com um recado que tira qualquer neura da organização: “Acho que a gente organiza o que a gente consegue e vamos nessa. Às vezes, não vai ser a casa, às vezes, vai ser a alma e está tudo bem”.
Organização natural
Maya Eigenmann, pedagoga, educadora parental e autora do livro “A Raiva Não Educa. A Calma Educa” (Astral Cultural, 2022), pensa na mesma linha. Para ela, a organização é um movimento natural do ser humano e, para cada pessoa, tem um significado. “Tem que ter muito cuidado para essa organização não virar uma ditadura porque é normal que as crianças explorem o ambiente, ainda mais as pequenas, que toda hora querem pegar um brinquedo diferente”, reflete.
Os pais precisam saber que pegar as coisas e não guardar é um ato inerente da criança, segundo Eigenmann. “O adulto pode conduzir a criança, explicando que antes de pegar um novo brinquedo, ela tem que guardar o outro. E, com o tempo, essa ação se tornará normal. Caso aconteça de a criança não arrumar, é só lembrar, não precisa dar bronca, porque temos que saber que as crianças estão em processo de aprendizado.”
Tem que ter muito cuidado para essa organização não virar uma ditadura
Modelar esses comportamentos, fazendo junto com a criança, é a dica que Eigenmann dá. Ela frisa, entretanto, que um bebê que engatinha ainda não entende o que é arrumação. “Então, temos que mostrar como faz, mas sem a expectativa de que a criança tenha que entender. Conforme a criança for crescendo, ela vai compreendendo qual é a lógica da arrumação.”