Na sala de aula, os efeitos da pandemia ainda se fazem sentir
Matéria publicada pela Revista Veja em 20/05/2023
Professores tentam sanar as lacunas e alunos se esforçam para retomar o ritmo
O recém-decretado fim da emergência global para a pandemia de Covid-19 é um sinal de que a vida, posta do avesso nos últimos três anos, já toma os contornos daquela normalidade tal qual a conhecemos, ainda que não se possa esmorecer nos cuidados. O vírus, porém, deixou sequelas em alguns escaninhos da existência humana — entre eles a educação, tão vital para mover as novas gerações e as engrenagens da sociedade. No ápice da crise sanitária, crianças e jovens do mundo inteiro se enclausuraram em casa e se instalaram em frente às telas, onde precisaram aprender de um jeito como nunca antes, enquanto os professores se esforçavam para ensinar longe da sala de aula.
O regresso às carteiras foi se dando aos poucos e, em 2022, estava quase todo mundo de volta ao colégio. Mas a experiência a distância — mudança que abalou as pilastras do ensino de uma hora para outra, sem nenhum ensaio — marcou a turma em idade escolar, impondo a pais, mestres e à própria garotada o imenso desafio de recuperar o aprendizado que ficou para trás e retomar a rotina. “Só agora estamos tendo a real dimensão do problema”, reconhece Marcos Raggazzi, diretor-executivo do grupo Bernoulli, que reúne 6 000 alunos em Belo Horizonte e Salvador.
Calcular o tamanho das lacunas é um exercício permanente, essencial para saber como os estudantes vêm evoluindo desde que tiraram as mochilas do armário e cruzaram de novo os portões. Depois de analisar 36 estudos mundo afora, a Fundação Lemann concluiu que a defasagem atual chega até a dez meses — isso considerando que os estudantes de instituições públicas e particulares já fizeram o caminho de volta à escola há um ano. Um estudo de Oxford que se debruçou sobre quinze países, incluindo aí o Brasil, aponta que menos da metade do currículo de 2022 foi cumprida.
Uma das razões reside justamente na necessidade de repor tópicos de anos anteriores que não haviam sido sedimentados. Como a educação se faz como um edifício, em que se a base não for sólida não dá para subir outro andar, não é possível simplesmente pular conteúdos — ainda que a missão de trazer à luz pontos que ficaram para trás envolva uma rotina diferente e, por vezes, extenuante. “Avançamos na matéria ao mesmo tempo que resgatamos temas não assimilados, tarefa complexa para a qual os professores estão sendo preparados”, explica Christina Sabadell, à frente da área pedagógica das escolas Pueri Domus Bilíngue e Sphere International School, em São Paulo, e da Carolina Patrício, no Rio de Janeiro, do grupo SEB.
Estudantes de todas as faixas etárias sentiram o baque, mas foi entre os menores, na crucial fase de alfabetização, que o distanciamento mais pesou. Os adolescentes tinham naturalmente mais maturidade para começar a administrar o dia a dia sem um professor ao lado, mesmo que tenham penado, ao passo que as crianças pequenas revelavam falta de concentração para acompanhar a aula no computador. “Eu própria tentava ensinar minha filha a ler e a escrever, só que não tinha a mesma didática”, diz Camila Rodrigues Ramos, 39 anos, mãe de Marina, 9, hoje no 3º ano do ensino fundamental. Em conversa com a escola, a mãe expressou o medo de que a menina ficasse com o conhecimento frágil e, assim, foi tomada a decisão de repetir o 1º ano. “Ela está bem mais segura”, avalia Camila. Não dá para relaxar no monitoramento dessa turma. “A emergência na educação do país vai durar pelo menos mais uma década”, acredita Lucas Machado Rocha, diretor de projetos da Fundação Lemann.
Os colégios têm lançado mão de um leque de estratégias para seguir em frente, entre as quais tomar a dura decisão de passar por cima de trechos menos relevantes da matéria passada e centrar no que mais importa. “É preciso traçar um plano com olhar individualizado, dando reforço a grupos de alunos que apresentem os mesmos nós de aprendizado, independentemente da série em que se encontrem”, diz Claudia Costin, presidente do Instituto Singularidades. No Vértice, em São Paulo, as turmas do ensino fundamental foram divididas em núcleos menores para ajudar a elevar o foco e houve expansão na carga horária das disciplinas em que os gargalos se mostravam mais críticos, como português e matemática. A exemplo de outras da rede particular, a escola também oferece uma sala de estudos supervisionada, à qual os estudantes podem recorrer para fazer lição de casa e tirar dúvidas. “Até agora temos dificuldades em retomar hábitos simples da convivência, como a utilização correta do caderno e a concentração em aula”, observa Patrícia Ribeiro, diretora do Vértice.
Os anos pandêmicos abalaram o percurso acadêmico em outro compartimento essencial — o da saúde mental da criançada. De uma pesquisa realizada pelo Unicef com 16 000 jovens brasileiros das redes pública (a que mais sofreu, de longe) e particular emerge um dado sobre o qual os holofotes devem ser direcionados: nove de cada dez estudantes do ensino médio relatam alguma piora no lado psicológico, revelando ansiedade, exaustão, insônia e, em casos mais graves, até depressão. Quatro de cada dez até pensaram em largar a escola. “Sofri para voltar ao ensino presencial. Era mais extrovertida, mas passei a ter vergonha de tudo e não consigo fazer novos amigos”, admite Isabela Pimentel, 15 anos, aluna do 1º ano do ensino médio. Ela, que costumava tirar notas acima da média, ainda não conseguiu ter o mesmo desempenho de antes. Histórias assim têm feito com que escolas de boa estrutura montem setores voltados para monitorar e receber alunos que ainda estão em processo de readaptação. “O trabalho para que as lacunas não se tornem perenes deve ser constante e incansável”, enfatiza Claudia Costin. As novas gerações, que precisam de boa educação para voar longe, agradecem o esforço.