Ano letivo começa com uma conquista: direito à saúde mental agora é Lei
Escolas iniciam ano letivo com uma conquista importante: a sanção do Projeto de Lei que institui a Política Nacional de Atenção Psicossocial nas Comunidades Escolares
Matéria publicada no Estadão em 29/01/2024
Agora é Lei: a Política Nacional de Atenção Psicossocial nas Comunidades Escolares (Lei 14.819) tem como principal objetivo promover a saúde mental de todos que integram a comunidade escolar — alunos, professores e demais profissionais que atuam na escola, além de pais e responsáveis. Depois de pandemia, índices elevados de depressão e ansiedade em crianças e adolescentes e episódios de violência dentro das escolas é uma conquista imensa ter a garantia da saúde psicoemocional como política pública instituída.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a saúde mental é definida como o equilíbrio do bem-estar físico, psicológico e social. Esses elementos são importantes para que qualquer pessoa consiga lidar com o estresse diário, sem que a sua produtividade seja prejudicada, contribuindo para o seu desenvolvimento individual e coletivo.
E quando se fala do ambiente escolar, a implementação de iniciativas tais como palestras, workshops, rodas de conversa e materiais informativos podem sim ajudar pais, alunos e professores sobre a importância da qualidade da saúde mental, além de orientá-los a respeito de como identificar os sinais de alerta e obter os recursos disponíveis.
A conquista é imensa e vem em boa hora se compreendermos o espaço escolar para além das aprendizagens cognitivas. É bom lembrar que o ambiente, mesmo quando aparentemente tranquilo e inclusivo, pode também se apresentar hostil devido à pressão por notas mais altas, casos de bullying, racismo, problemas familiares e questões relacionadas à autoaceitação.
Desse modo, a função da escola na promoção da saúde mental envolve criar um espaço seguro para discutir esses temas e desmistificá-los, colaborando com a construção de relações mais saudáveis e gentis entre alunos e educadores.
As boas práticas de escolas privadas e públicas A diretora do Colégio Equipe, em São Paulo, Luciana Fevorini, concorda que a escola precisa, basicamente, ser um ambiente agradável, familiar, onde os alunos tenham amigos e se sintam acolhidos.
“Aqui no Equipe nós temos iniciativas que acontecem o ano todo, cujas partes se ajustam conforme as necessidades a cada ano letivo. Nós fazemos rodas de conversas, temos espaços de aconselhamento, grêmios, fóruns, entre outras atividades, que fazem parte da cultura de orientação educacional da nossa escola,” conta.
Com três projetos sociais no ensino médio, Fevorini alega que no Colégio Equipe há uma preocupação quanto ao processo de bem-estar desses alunos e na forma deles pensarem suas relações sociais e interpessoais no mundo.
A educadora destaca a importância da parceria entre alunos e professores. “Os alunos querem se sentir parte do todo e ter esse sentimento favorece o bem-estar deles. Aqui eles sugerem atividades com os professores, como jogos, entre outras. Quando se percebem coletivo e, que é a escola é por eles, ficam menos agressivos,” lembra a diretora que nem sempre consegue lidar com todas as questões.
á na escola Gracinha, o professor de Sociologia e Projeto de Vida, Paulo Edison de Oliveira, fala de um conjunto de ações que também ocorrem de maneira permanente, inseridas no percurso de Orientação Profissional e Projeto de Vida. Ele explica que o projeto de vida é baseado em um tripé: ‘Autoconhecimento’, ‘Encontro com o Outro’ e ‘Eu e o Futuro’.
No Autoconhecimento, os alunos têm atividades referentes aos valores, família, suas emoções e sentimentos, assim como relacionamentos. “Nesta atividade, tratamos algumas temáticas que fazem referência ao autoconhecimento, por exemplo, falamos da construção da imagem, quem é ele, o que pretende,” conta o professor que usa como exemplo o livro “Por que fazemos selfies”, que fala sobre o fenômeno das selfies e das experiências pessoais por meio da fotografia, que percorrem diariamente as telas das redes sociais.
O professor do Gracinha conta que neste primeiro momento, os alunos desenvolvem seu projeto de vida. Já na fase do Encontro com o Outro, Paulo explica que a atividade visa reforçar a importância do outro. “Aqui propomos ao aluno refletir sobre seus objetivos, estar em sintonia com o outro, ter sonhos coletivos, até porque temos as questões das diversidades, gênero e, precisamos exercitar a inclusão diariamente para evitar que alguém se sinta excluído.”
Já em relação ao tema Eu e o Futuro, as atividades são uma espécie de preparação para a saída do estudante para sua formação e carreira profissional. “Esta é a parte em que o aluno vai escrever uma autobiografia,” diz.
A inclusão de técnicas de gestão de estresse e habilidades de enfrentamento na grade curricular também é uma prática inovadora em algumas instituições. A orientação e desenvolvimento da resiliência não apenas complementa a formação acadêmica, mas capacita os alunos que com essas ferramentas conseguem enfrentar as pressões da vida.
Há quase seis anos, a escola estadual Profa. Dulce Leite Da Silva adotou a prática da meditação mindfulness, sob a direção de sua diretora escolar, Cláudia Vasconcelos. “Tudo começou, porque em 2018, eu estava à beira de um colapso de estresse. Na época, eu era coordenadora dessa escola de ensino integral (do primeiro ao quinto ano), onde nós ficamos nove horas com essas crianças. E já havia muitos conflitos recorrentes na escola,” lembra a educadora.
Claudia, que se tornou especialista na prática, explica que a meditação mindfulness trabalha a respiração consciente, o corpo e os sons e, prega também a consciência sobre os pensamentos, sentimentos e sensações que todos temos. “Com ela é possível entender esses momentos de estresse, ouvindo a nossa respiração, observando nosso próprio estado espírito e ouvindo os sons externos e internos.”
A diretora escolar conta que fez questão de trazer a prática para que todos da escola participassem. Empolgada com os benefícios, ela descobriu o programa MindKids e levou a meditação mindfulness para dentro da sala de aula. “Fiz todos os workshops, sendo o primeiro para adultos e, depois, me certifiquei, começando ali um trabalho com todos os alunos (hoje são 443), além de pais e professores.”
Ela lembra que no começo não foi fácil e houve certa resistência, porque é preciso disciplina e entendimento de que não é algo tão simples de se fazer, mas que ao se tornar um hábito, traz inúmeros benefícios para saúde física e mental, sobretudo ao longo dos anos.
“Eu expliquei que a meditação mindfulness não tinha a ver com religião e, que, na verdade, se tratava de um estilo de vida. Mas deixei bem claro que não era obrigatório. Nós temos essa ferramenta na escola e os estudantes são convidados a praticar, mas nada é obrigatório,” pontua Cláudia, que pede aos não participantes para não atrapalharem o processo do outro que queira participar.
Desde 2018, o Instituto Ame Sua Mente, é uma organização que desenvolve projetos sociais pautados em pesquisas científicas com foco na promoção da saúde mental, redução do estigma, prevenção e manejo de transtornos, tendo o ambiente escolar como principal cenário de intervenções. Uma de suas iniciativas é o Ame Sua Mente na Escola, um programa de letramento em saúde mental destinado aos educadores e gestores escolares.
Atualmente, o programa está em mais de 1.500 escolas públicas do estado de São Paulo e capacita, diariamente, educadores e gestores para lidarem com uma gama de desafios, que vão desde a ansiedade até situações mais graves, como autolesão e suicídio. “Os educadores adquirem conhecimentos abrangentes sobre saúde mental, incluindo questões como depressão e ansiedade. Com essa formação, eles desenvolvem um vocabulário para abordar essas questões de maneira mais eficaz,” explica o médico Rodrigo Bressan, presidente do Instituto Ame Sua Mente.
“À medida que aprofundamos as habilidades e capacidades, o ambiente escolar se torna mais acolhedor. Desenvolvemos também um guia de saúde mental na escola que vai beneficiar toda a escola, mas principalmente para os gestores,” relata Bressan.
O médico, psiquiatra com PhD pelo King ‘s College London, destaca a importância do planejamento de ações na criação de direcionamentos. Isto é, cada educador cria um plano personalizado para sua escola, o que proporciona clareza em casos de emergência ou de bullying, tornando o enfrentamento dessas dificuldades mais tranquilo e eficiente.
Além disso, a AME oferece outros projetos como jogos emocionais para crianças e o “Bússola”, um chatbot no WhatsApp que auxilia professores a lidar com questões sensíveis, como autolesão e suicídio. “Todo mundo que quiser pode usar. Esse chatbot está disponível para o Brasil inteiro, e serve para auxiliar com dicas, algum professor que esteja muito alarmado com a situação que está vivendo ali ou para esclarecer dúvidas,” conta Bressan.
No contexto das campanhas nacionais de redução do preconceito e melhoria da atenção à saúde mental, o presidente da AME ressalta que a pandemia representou um grande desafio para os alunos, observando que houve a perda de uma janela crucial no desenvolvimento dessas crianças, especialmente no aspecto socioemocional, em que eles estão aprendendo a lidar com os conflitos e a conhecer seus próprios limites. “Na medida que ficaram mais de dois anos sem treinar essas habilidades emocionais que são a própria civilidade, isso resultou no aumento da agressividade e intolerância por parte deles”, resume.
Para Bressan, é importante que os jovens reaprendam a se envolver em atividades acadêmicas novamente, assim como a lidar com a raiva e os conflitos, respeitando as autoridades para assim compreenderem seus próprios limites.E num momento de mundo onde tudo parece tão sem limites, reaprender sobre contornos parece algo urgente.