Pouco caso sobre bullying na infância preocupa educadores e pais
Matéria publicada no UOL em 16/02/2024
A discussão sobre o bullying nas escolas do Brasil e do mundo tem deixado de lado um grupo decisivo: o da educação infantil.
Geralmente focados na adolescência, os estudos sobre a prática entre crianças menores de 10 anos ainda são incipientes e faltam dados sobre o assunto.
Mas educadores e psicólogos dizem que é preciso, com urgência, falar sobre bullying entre crianças com menos de 12 anos.
Se não houver prevenção nas idades iniciais, dizem eles, o bullying chega fortalecido à adolescência.
A reportagem do UOL ouviu adultos que sofreram bullying na infância e pais, que acusam as escolas de ignorar que crianças também podem machucar e humilhar umas às outras.
Começa cedo
Para a pedagoga Rita Fraga, diretora do Sindicato dos Professores de Escolas Particulares de São Paulo, o fato de o bullying ter crescido entre adolescentes, nos últimos anos, mostra que falta prevenção entre os pequenos. Em 2022, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde Escolar, 40% dos adolescentes afirmaram já terem enfrentado bullying – em 2009, eram 30,9%.
“O crescimento das agressões também reflete uma sociedade polarizada e violenta. Na escola, crianças reproduzem o que veem em casa”, afirma Rita.
Dos dez entrevistados pelo UOL, sete relataram perseguição no ensino infantil e no primeiro ciclo do fundamental devido à deficiência física, autismo, características físicas singulares ou peso. Outros dois foram vítimas de racismo e, em um único caso, a vítima não identificou um motivador específico para o bullying.
Aos 5, a filha da escritora K.G., de Fortaleza, foi trocada de turno para ficar longe de uma colega que a acusava de ter o cabelo “ruim e feio”, por ser cacheado. “Ela chorava e não queria mais ir à escola”, conta K.
Ao bullying na primeira infância se somaria outro, na pré-adolescência, que a faria perder três meses de aula. Hoje com 13, a adolescente é acompanhada por psicólogo e psiquiatra e trata ansiedade e depressão – diagnóstico comum em quem enfrentou perseguição no começo da vida escolar.
Desejo de morrer
De todas as sequelas do bullying, poucas assustam tanto os pais quanto a ideação suicida.
Aos 9, depois de enfrentar perseguição dos colegas da escola – por ser adotada, ela escutava que havia sido encontrada no lixo —, a filha da jornalista A. , de São Paulo, disse aos pais que queria morrer.
“Fiquei desesperada”, conta A., que então telefonou para uma médica e foi aconselhada a não deixar a menina sozinha.
“Ela passou a dormir no nosso quarto”, conta.
Como a situação não se resolveu, A. mudou a criança de escola. Hoje com 11, diz, a filha não sofre mais violência, mas continua tomando remédios para ansiedade e depressão.
Mudança de escola
Em todos os casos ouvidos pelo UOL, os pais relataram insatisfação com o tratamento recebido nas escolas. A principal queixa foi de omissão ou naturalização do ocorrido.
Um destes casos envolveu o filho da psicóloga B., de Brasília. Durante o primeiro ciclo do ensino fundamental, ele foi uma criança solitária.
Por estar acima do peso, era frequentemente alvo de gozação dos colegas. Num jogo de futebol em que o time dele perdeu, foi responsabilizado pela derrota. A culpa foi do “gordo”, disseram os outros meninos.
Ele foi até a coordenação e ouviu da superiora que estava fazendo “fofoca”. Foi orientado a voltar para o recreio e esquecer aquilo. Nem aos pais teve coragem de contar o ocorrido.
B. desconfiou que algo pudesse estar errado quando as notas do filho começaram a cair. Ele também passou a ter calafrios, diarreia e escapes de urina durante as aulas.
Numa manhã, antes de ir para a escola, o garoto teve uma crise de pânico tão intensa que precisou ser levado ao médico.
“Ele passou por clínico geral, pediatra, psiquiatra, terapia e nutricionista”, conta B. Um dia, finalmente, revelou o que enfrentava na escola.
“A coordenação escondeu a situação da família para não ter trabalho”, afirma a mãe.
Diante da insistência da escola em minimizar o ocorrido, B. foi transferido. “Hoje ele está ótimo”, afirma.
‘Pior do que entrava’
Em outra situação, o menino P., de 8, autista, passou a enfrentar perseguição na escola após ter sido espalhado o boato de que ele se masturbava na frente de outras crianças.
A história chegou à pedagoga C., a mãe, por meio de uma das funcionárias. Como o filho é surdo e não verbal, ela não conseguiu obter, por meio dele, mais detalhes.
C. relata que o garoto, que já tivera um agravamento do quadro durante a pandemia, sempre voltava das aulas “pior do que entrava”. Quando a mãe ia buscá-lo, ele corria para os braços dela, em desespero.
Ela disse que a coordenação “varreu a sujeira para baixo do tapete” e, por isso, decidiu tirá-lo da escola.
“Agora preciso lidar com uma criança com ainda mais dificuldades de socialização. Por causa do bullying, ele regrediu no desenvolvimento”, diz C.
Caso a caso
Para a psicóloga Luciana Fevorini, diretora escolar do Colégio Equipe, em São Paulo, lidar com situações de bullying é uma tarefa “difícil, delicada e particular” o suficiente para que não seja possível estabelecer um protocolo de atendimento.
“Não é como numa situação de primeiros-socorros”, ela diz. “Cada caso precisa ser avaliado em suas singularidades.”
Ao contrário do que ocorre em idades mais avançadas, afirma Luciana, crianças que se envolvem em conflitos tendem a procurar a mediação de um adulto — e, embora não haja um procedimento padrão, há diretrizes para a resolução desses casos.
Uma delas orienta a combinar com a criança, seja ela vítima ou autora do bullying, como e quando o caso será comunicado para a família.
“Sempre levamos para a família”, diz Luciana. Mas é preciso mais cuidado do que simplesmente “pegar o telefone” e falar com pai e mãe, afirma.
Temor, tristeza e frustração
Análises específicas sobre bullying na educação infantil brasileira ainda são raras, afirma a psicóloga Amanda Albuquerque.
Um grupo de pesquisadores brasileiros, contudo, reuniu as principais características da prática nessa faixa etária, de forma generalizada (não só em ambiente escolar), ao analisar 13 estudos científicos internacionais. A conclusão coincide com os relatos ouvidos pelo UOL.
Publicada em 2021 na revista Educação Especial, a meta-análise afirma que crianças com sobrepeso, transtornos psiquiátricos ou deficiências têm até seis vezes mais chances de serem vítimas de bullying do que as demais. As agressões são mais físicas – com arranhões, chutes e tapas – quanto mais novos são os envolvidos.
‘Impulso de criança’
Para Maria Eduarda Sawaya, presidente da Abepar (Associação Brasileira das Escolas Particulares), é inadequado chamar esses conflitos de bullying, comportamento que “aparece mais no início da adolescência”.
“Na educação infantil não é uma ação sistemática e recorrente de agressão direcionada a um alvo, mas uma impulsividade da criança”, avalia.
No entanto, a presidente da Abepar concorda com a opinião dos especialistas que reforçam a necessidade de “intervir nos comportamentos desrespeitosos, agressivos e fora do limite da convivência ética”.
Responsabilidade de pais e educadores
Uma pergunta que psicólogos ouvem com frequência é sobre de quem é a culpa pelo bullying. Eles preferem falar em “responsabilidade” —no caso, respondem, é de pais e educadores.
“Criança aprende em casa sobre racismo e xenofobia. Se escuta o pai falar que nordestino é inferior, vai reproduzir essa fala na escola”, exemplifica Luciene Tognette, coordenadora do Gepem (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral), vinculado à Unicamp e à Unesp.
Tanto o autor quanto a vítima do bullying têm dificuldade em reconhecer o próprio valor, e escolas precisam acolher essas crianças, afirma Luciene.
“Mas falta capacitação. As escolas não sabem lidar com bullying”, aponta a advogada Cleo Garcia, do Gepem.
Uma das iniciativas mais comuns e “desastrosas” das escolas, segundo Cleo, é tratar o bullying com “mediação” – colocar um estudante de frente para o outro e obrigar o agressor a pedir perdão.
“Isso não resolve”, afirma.
Para ela, escolas devem dar ao tema da convivência ética a mesma importância dispensada a disciplinas como português e matemática. “Deve ser inserida na educação do dia a dia”, diz.
Lei ‘punitivista’
Uma lei sancionada pelo presidente Lula em janeiro insere os crimes de bullying e cyberbullying no Código Penal, com penas que vão de multa a 4 anos de prisão.
Para Cleo Garcia, trata-se de uma “lei punitivista”, uma “resposta política” para uma sociedade que “não quer justiça, mas vingança”.Ela se refere aos recentes ataques em escolas, “que não podem ser atribuídos exclusivamente ao bullying”.
“Não é criminalizando que se resolve um problema de convivência”, afirma.
“A natureza da escola não é criminalizadora ou judicializante, mas formadora”, concorda Luciene Tognette.
Outra crítica é que, ao tratar bullying em termos criminais, a lei não olha para as crianças, na avaliação de especialistas.
“Imagina o pai cujo filho recebeu mordidas de uma criança de 3 anos. Então é para criminalizar esse bebê? O responsável por ele vai pagar uma multa?”, indaga Luciene.
‘Contradição’
O Ministério da Educação informou ao UOL que o Brasil possui um “arcabouço normativo” para tratar “do enfrentamento à violência no contexto escolar” – além da lei recém-sancionada, destacou outras quatro (incluindo a LDB, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) e uma resolução.
Uma das leis, de 2015, estabelece como objetivo “evitar, tanto quanto possível, a punição dos agressores, privilegiando mecanismos e instrumentos alternativos que promovam a efetiva responsabilização e mudança de comportamento hostil”.
Assim, para Cleo Garcia, a lei mais recente, que estabelece punição, contradiz a anterior.
Ao UOL, o MEC informou que “está elaborando um conjunto de orientações preliminares para apoiar as secretarias municipais e estaduais de educação no desenho de suas políticas/programas locais de prevenção e combate à violência, uma vez que a lei estabeleceu que essa é uma competência dos gestores locais das redes e sistemas de ensino”.