Leila Maria Vespoli de Carvalho, egressa da Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP
Minha história com a USP começou aos 9 anos quando nos mudamos do bairro da Pompeia para o então Jardim Previdência, em São Paulo. Da janela da sala da nova casa, era possível ver alguns prédios da USP no horizonte ao longe. Naquela época, eu desenvolvi uma grande paixão por Astronomia. Eu ganhei um pequeno telescópio com o qual me divertia vendo planetas durante a noite e os prédios da USP durante o dia. Minha mãe também gostava de contemplá-los comigo, e nunca perdia a oportunidade de dizer: “Leila, é lá que você vai estudar”. Tornar-me uma aluna da USP foi uma ideia que me acompanhou como um sonho a tiracolo por todos os anos de colégio.
Minha primeira Fuvest marcou meu 18º aniversário. Como não havia curso de graduação em Astronomia na época, a Física dominou todas as minhas opções. A ideia era fazer Física e depois uma pós-graduação em Astronomia/Astrofísica. Contudo, como todo bom adolescente, estava bem confusa sobre meu futuro. O sonho de infância de ser uma astrônoma, descobrir planetas e buracos negros e um dia revolucionar a Astrofísica ainda me acompanhava como uma velha promessa a ser cumprida. Porém, como muitos jovens da época, sentia uma comichão interior típica de uma geração que experimentava democracia pela primeira vez, e que sentia a missão de garantir estabilidade política e justiça social.
Na minha cabeça, intelectualmente essa missão só poderia ser cumprida por alguém que se dedicasse às “humanidades”. Conflito pessoal e de valores. Prestei vestibular para a Física na USP e Ciências Socias na PUC. Mas a USP “sabia” que não era o meu tempo e que todo aquele namoro à distância necessitava amadurecer antes de se tornar um matrimônio. Não estava preparada para tomar um rumo tão importante e difícil e, assim, boicotei inconscientemente a segunda fase da Fuvest. Não deu USP, claro, mas entrei em 13º lugar na PUC!
Minha família era parte de uma classe média que sobreviveu a muitas crises financeiras, mas sofreu grandes perdas de poder aquisitivo ao longo delas. Embora vivêssemos sempre de “cinto apertado”, meu pai nunca deixou de pagar uma escola particular para mim e minha irmã na expectativa que um dia pudéssemos estudar em uma boa universidade pública. Assim, embora tivesse entrado na PUC, meu pai disse que não iria pagar faculdade depois de tantos anos pagando um colégio privado. Eu teria a liberdade de escolha de carreira, mas não de universidade. Embora tenha sofrido com isso e sentido que essa era uma injusta punição pelo meu primeiro fracasso, hoje reconheço que a decisão do meu pai foi a mais sábia e transformou meu futuro num momento de bifurcação existencial importante.
Assim, ser parte da USP era a única forma de conseguir realizar meus sonhos. A USP deveria ser o alvo desses sonhos, custasse o que custasse. Um ano de cursinho, estudando todos os dias, incluindo finais de semanas e feriados, era a minha única forma de realizar esse sonho. Mas, ao longo desse ano, descobri outra carreira que me atraiu: a Meteorologia. Em 1981, a Meteorologia tinha 20 vagas e o vestibular era vinculado à Física, Matemática e todas as Engenharias. Assim, para ser classificado para Meteorologia, o estudante teria que competir com muitos outros estudantes bem preparados para as ciências exatas.
A Fuvest de 1981 foi o evento mais estressante da minha vida. Honestamente, pensei que não iria ter condições emocionais para terminar a segunda fase. O exame de matemática foi o mais difícil, pois tinha que tirar o mínimo de 3.0. Entrei chorando e saí chorando, e mesmo assim tirei 3.2… Mas meu interesse nas humanidades fez a diferença e consegui ser bem classificada entre todos os engenheiros, pois escrevia bem e me interessava por disciplinas de humanas. A alegria de ver meu nome em um jornal (sim, era assim que sabíamos se havíamos passado) exatamente como imaginei que aconteceria, foi uma das maiores emoções da minha vida, se não for a maior delas.
Entrar na Universidade nos anos 1980 foi uma experiência interessante e, obviamente, muito diferente do que é hoje. A Universidade pós ditadura tinha um compromisso com a democracia, e estudantes estavam exercendo seu poder e aprendendo com ele. Havia instabilidades políticas e um desejo enorme de fazer parte desses movimentos. Além disso, contávamos uns com os outros, pois não havia muito apoio didático, infraestrutura e tecnologia que nos ajudasse na nossa formação como existe hoje.
Em meu plano inicial, eu faria os 4 anos de Meteorologia e depois uma pós em Astronomia. Contudo, a Meteorologia me encantou de uma forma que jamais imaginei. Estudar o oceano em que vivo, conseguir entender os fenômenos que me assustam e me fascinam se tornou mais que uma paixão, se tornou uma obsessão. Terminei a faculdade em 5 anos por conta de um emprego, mas sem repetir uma disciplina sequer. A Astronomia se tornou meu passatempo, mas a Meteorologia era meu lar. Terminei a graduação com notas altas e consegui um estágio e um emprego na então Fundação Centro Tecnológico de Hidráulica (FCTH) como meteorologista, a qual também era sediada no campus da USP.
O Departamento de Meteorologia havia sido criado há apenas algumas décadas e havia poucos professores com doutorado, mas com muita aula para dar. Assim, existia uma necessidade enorme de contratar novos talentos que pudessem ajudar no ensino, mas que tivessem potencial para crescer academicamente. A USP da época investia em jovens talentos, pois era a única forma de atrair boas cabeças com salários pouco atraentes. Assim, o então jovem departamento abriu uma vaga em Climatologia para a posição de “auxiliar de ensino”(não requeria ter diploma de mestrado ou doutorado). Apliquei para a posição sem hesitar um minuto. Era uma oportunidade de crescer na carreira e fazer um doutorado ao mesmo tempo, lecionar (o que eu sempre adorei) na Universidade que já era meu lar, que outro sonho eu poderia imaginar? Meu talento: estudar muito. Minha experiência: alguns anos como professora de Física do ensino médio do Colégio Objetivo.
Fiz o teste de seleção feito pelos professores da época e fui aprovada, praticamente um ano após terminar a graduação. Minha obrigação era dar aulas e terminar meu doutorado. Embora muitos colegas tenham optado por fazer o mestrado e doutorado no exterior, minha resolução foi fazê-los na USP. Eram tempos difíceis, de muita crise politica e financeira no País. Pouquíssima verba para a ciência e a educação, e a tecnologia era para lá de obsoleta, mesmo para a época. Mas o jovem departamento tinha professores com uma visão otimista, e os obstáculos foram, um a um, superados com criatividade. Aprender era imaginar as coisas na nossa cabeça, literalmente. Por exemplo, os mapas sinóticos com animações coloridas de variáveis meteorológicas que visualizamos hoje com aplicativos em computadores e mesmo nos nossos celulares, eram analisados com impressões em papel apenas com números que eram colocadas na parede, uma ao lado da outra. As “animações” eram feitas no nosso cérebro após juntarmos uma informação na outra e conseguirmos dar sentido às equações prognósticas que havíamos estudamos nos cursos. E aprendíamos muito, como se construíssemos um quebra-cabeça. Era um aprendizado diferente, mas que criou sólidas estruturas que se mantém até hoje.
Quatro anos para terminar um mestrado, um ano para pensar no doutorado e 4 anos para terminar o doutorado (que conclui em 1998) formaram uma carreira a qual eu tenho muito orgulho. Em 2000, fui contratada como Professor Assistente e só saí da USP no meu pós-doutorado entre 2000 e 2001, o qual fiz na Universidade da Califórnia, Santa Barbara. Entre 2002-2009, orientei 7 estudantes (5 mestrados e 6 doutorados), todos hoje bem empregados, 6 no campo da Meteorologia.
Meu relacionamento com a USP, embora longo, teve uma bifurcação um tanto inesperada. Em 2008, recebi uma oferta para integrar o corpo docente do departamento de Geografia da Universidade da Califórnia, Santa Barbara, assumindo a área de Climatologia. Por motivos pessoais, mas com uma enorme pressão no coração como se rompesse uma relação de longo termo com uma pessoa querida, aceitei a oferta e me demiti da USP. Desde 2009 integro o grupo de professores dessa universidade.
Hoje, sou Professora Titular e continuo com a minha pesquisa em Meteorologia, lecionando, orientando e fazendo pesquisa. Sinto um orgulho enorme em dizer que sou a única professora do departamento com formação acadêmica obtida inteiramente fora dos Estados Unidos na melhor universidade da América Latina, qual está entre as melhores do mundo. Minha paixão pela Meteorologia continua a inspirar minha carreira e literalmente contagiar muitos dos meus alunos. Minha história com a USP nunca terminará porque ela escreveu os melhores capítulos da minha vida, os quais contribuíram para minha formação pessoal e profissional e que serão sempre contados com grande gratidão e eternas saudades.