Carlos Lazzarotto, egresso da Escola Politécnica (Poli) da USP
Depois de toda a grande comemoração na passagem do vestibular, o calouro chega à tão sonhada faculdade de engenharia, onde é recebido com uma grande festa. Tudo para disfarçar que a matrícula que está assinando irá mudar sua vida. É um tratado de sangue, em que o próprio Diabo deveria estar checando os futuros membros de seu inferno.
No primeiro dia de aula, o calouro chega todo tímido, sem barba, virgem. A presa perfeita. A Besta disfarçada abre a porta da sala e cordialmente diz:
— Bem-vindo ao Inferno! Esta é a sua sala. Entre, por favor!
O novato adentra e vê a cena: diversos seres carecas, inidentificáveis, o observando curiosamente, sem nenhum brilho de esperança no olhar, como se estivessem num verdadeiro campo de concentração. Todos sem nome, nem identificação, apenas denominados “Bixo!” (sim, com x). Ele se senta para o início das aulas.
No começo, o calouro se sente muito esperto e logo desconfia que todas as aulas fossem as famosas “aulas trotes” dadas pelos veteranos, mas não demora a perceber que a verdadeira aula trote foi de fato a mais fácil de todas.
Além das difíceis aulas, a pressão também ocorre nos corredores das salas, onde os desumanos veteranos, que mais parecem soldados em guerra, ficam hostilizando, sem a menor consideração e admiração por eles, que venceram aquela dura batalha do vestibular. O pobre calouro, que nas ruas orgulhosamente desfila com suas camisetas da faculdade, se sentindo o máximo por ter passado na concorrida faculdade, lá dentro não se sentia ninguém. Ninguém o respeitava. Ninguém ligava para ele. Nem o cachorro que circulava a faculdade o venerava.
Para o maior envolvimento entre os bixos, logo deram início as gincanas de integração, mas que na verdade são a própria denegrição da espécie. Os gritos dos endiabrados veteranos seguem por toda a saudável gincana: “Bebe tudo, bixo!”, “Come todo o bandejão!”. O calouro aprecia toda aquela festa, ficando até a noite para o imperdível show das “Miss Bixos”, com esperança de ver as garotas do seu ano. Porém, logo constata que naquele desfile havia na verdade seus colegas de classe fantasiados mostrando as suas pernas nem um pouco torneadas.
Mas então vêm as matérias.
lº Ano
Começa o biênio, ou para muitos, milênio. Cálculo I e Física I se apresentam um pouco tímidas, parecendo amigáveis. Programação, em compensação, assusta. Química faz você odiar tudo que já estudou dessa matéria durante a época do colegial. E então vem a maldosa, ingrata, horripilante Ãlgebra Linear. O terror de todos os calouros. Ninguém sabe para que serve, ninguém sabe por que ela existe, mas sabem que ela está lá e que sempre os persegue, por anos e anos.
Com muito esforço, o calouro continua para o segundo semestre.
Cálculo II e Física II voltam, agora já mostrando um pouco das garras. Se Programação assustava, Cálculo Numérico então, causa arrepios. É mais fácil se desvencilhar daquelas poderosas armadilhas dos Jogos Mortais, do que sair vivo de suas provas. E aquela assombrosa Ãlgebra volta para se vingar dos poucos que so- breviveram, deixando qualquer Bicho Papão, Jason ou Freddy no chinelo.
Introdução à Engenharia é aquela matéria para dar uma animada na galera, que tenta camuflar o curso, mostrando que não será difícil. Foi a primeira e última matéria fácil.
Mas ele é resistente e continua para o próximo ano.
2º ano
Se o primeiro ano parecia fácil, é porque ele não conhecia o segundo. Cálculo III e Física III retiram suas máscaras de boa- zinhas e começam a fuzilar todos que se atreveram a se matricu- lar nelas. Além disso, elas se associam à perigosa Mecânica dos Fluídos. Nesse momento que o estudante reflete e se recorda do dia que selecionou “Engenharia” no vestibular. “Por que fez esta escolha?”, ou melhor, “Por que escolheu Exatas?”, ou ainda, “Por que resolveu um dia estudar?”. São as questões que passam pela sua cabeça enquanto o professor explica os teoremas dos fluídos. Geologia e Topografia surgem para mostrar que o solo em que pisa é perigoso e que sua caminhada na faculdade não será fácil.
No segundo semestre, Cálculo IV e Física IV utilizam seus últimos cartuchos para aniquilar mais alguns alunos. Já Estatística serve apenas para calcular qual a probabilidade de sobreviver na
faculdade.
O futuro engenheiro, que decidiu seguir a carreira da Civil, já conhece algumas matérias de sua área. Resistência dos Materi- ais é o primeiro capítulo da terrível sequência. Ela aparece dócil, amiga, companheira, fazendo até parecer que o aluno se deu bem escolhendo a área civil. Um veterano explica que nunca fez Resistência uma única vez. Fez ao menos duas vezes cada. O calouro, que sempre se acha muito esperto, ri do veterano, mas mal sabe ele que no futuro ele mesmo vai repetir essa frase.
As matérias do Departamento de Construções, que o acompanham desde o primeiro ano, começam a lhe sondar mais. Elas irão te perseguir durante todo o restante do curso, te cercando de todos os modos, sem chance de fugir.
3º ano
Eis que surge o terceiro ano. Muitos dizem que o segundo ano é o pior, que se você sobreviveu a ele, vai sobreviver a todos e que a fase do biênio é a fase mais difícil. Bom, quem disse isso, é certo que não passou para o terceiro ano.
O terceiro ano começa com a incrédula, mercenária, sanguinária Resistência dos Materiais I. Ela mostra todo o po- der da tortura, assédio, amargura, levando a todos a desilu- são, tristeza, desesperança, chegando a crer que não há vida fora da faculdade. O calouro acha que agora o curso chegou ao limite. “Coitado! Mal sabe ele o que vem por aí’’ Se não bas- tassem as Resistências, surge também Concreto, que irá con- cretar de vez todos os alunos. É mais comum ver nota zero na primeira prova do curso do que ver uma nota acima de cinco.
Mecânica dos Solos faz o aluno se sentir andando num campo minado. Qualquer distração e “Bummmm!”, é terra para todo o lado.
Nesse ano também começam as matérias de água, iniciando por Hidráulica, em que literalmente você entra pelo cano, e por Hidrologia, em que você nunca mais chama chuva de “chuva” e, sim, de “precipitação pluviométrica’, além de toda vez que começa a cair água do céu, lágrimas também caem de seus olhos ao se recordar da torrencial prova.
Em Estradas, o calouro se sente numa via sem fim, sem possibilidade de sair e sem dinheiro para pagar os pedágios.
O segundo semestre chega. Se ele achava que Resistência I era o limite, é porque a II ainda não havia chegado. Na primei- ra aula, muitos fogem após o professor dar uma grande, tediosa e incompreensível explicação sobre a matéria, relembrando a disciplina anterior, e dizendo que aquilo é o básico. A maioria corre da classe direto para a secretaria, tentando trancar o mais rápido possível aquela matéria.
Poucos sobrevivem para o Concreto II, a maioria ficou concretada no I. Nem precisa dizer que o II é muito pior. No experimento de concreto, muitos olham com sentimento para o corpo de prova que é espremido na prensa. A verdade é que todos compartilham da mesma sensação de pressão durante a prova.
Quando o estudante acha que a matéria de Tráfego irá ajudar a encontrar uma saída, ela se mostra como sendo a mais temida de todas as matérias de Transporte. É mais fácil comandar o Tráfico de Medelin do que trafegar por esta matéria. Nela o calouro se sente preso num grande congestionamento e só sai dele um ano depois. Isso se conseguir uma boa carona em algum transporte público.
E se achavam que a Resistência estaria de fora desse semestre, se enganaram. A versão III vem de nome novo, com outra roupagem, outros professores, com uma proposta aparentemente diferente, mas é uma cilada e quando vé, nem de recuperação ficou. Isso para quem teve coragem de fazer.
4º ano
Olha, se contar é difícil que muitos acreditem, mas no quarto ano da faculdade o calouro ainda trabalha com a hipótese de largar a faculdade. Sim, largar. Ele pondera os fatos, afinal não vê o fim da linha. Seus colegas o reprimem, dizendo que já passaram três anos de cinco, mas para ele, passaram somente três anos de oito. Ou seja, restam ainda cinco anos. Tempo suficiente para se formar em outro curso de quatro anos e ainda ganhar um troco de um ano.
Mas ele é forte e continua.
Então chega a última Resistência, RIV (a última?), que aparenta ser mais fácil. Mas só a Prova 1, pois quem não garantiu nota, não passa pela P2. Obras de Terra, Fundações e Pavimentos, só servem para reforçar a ideia que o estudante entrou num terreno perigoso.
Neste ano, projetam-se barragens, obras marítimas, fluviais, fazendo com que o estudante se recuse a viajar para a praia com os amigos. Não, não é medo do mar, e sim medo daqueles espigões que tanto tiraram suas noites de sono. E para ele, piscina virou piscinão, ou seja, acabou o lazer na água. Neste ano que também se houve a famosa frase: “É melhor ser engenheiro de merda, do que uma merda de engenheiro!”.
E quando o estudante achou que o trauma de concreto aca- bou, ele descobre que o concreto tem uma aliada: Metálica. É como se chegasse ao show do Metallica, diretamente para a roda dos headbangers. É porrada para todo o lado, sem nem saber porque chegou ali, porque está ali e muito menos como sair dali. Só com um pedaço de madeira para conseguir se salvar.
5º ano
Ano marcado pelas famosas disciplinas optatórias. Optatórias? Sim, matérias optativas que são obrigatórias. Entre elas Resistência V. “Ué, mas Resistência IV não era a última?”. Sim, é essa a pergunta que surge. O que faz lembrar muito os filmes do Sexta-feira 13. Lá também o capítulo 4 seria o último, mas aí Jason ressurge no quinto, porém camuflado por um policial. É a mesma coisa. Dão o nome de Modelagem Computacional, só para não aparecer “Resistência” no nome. Mas é a mesma sequência de matérias. A diferença é que nessa, poucos alunos, ou ninguém, entende a matéria, mas acabam passando. Como ocorre isso, ninguém sabe explicar.
O trabalho de formatura, que seria nesse ano, é adiado, sem previsão de data.
6º, 7º e 8º ano
Nesse período é uma salada de frutas de matérias. São matérias do primeiro, segundo, terceiro, quarto, quinto, tudo misturado, de forma a completar toda a grade curricular possível (40 créditos), com a esperança que de quanto mais créditos fizer, mais créditos irão passar. É incrível as novas amizades que surgem nesse período, afinal, numa sala que só tem bixos, ver um veterano do seu ano, é uma visão de tranquilidade, esperança e de que você não é o único a fazer aquela matéria novamente.
E numa mistura de muito estudo, sorte, muito estudo, dedicação, muito estudo e certa esperteza para conhecer os portais mágicos que garantem a aprovação nas disciplinas, é que o calouro finalmente consegue encerrar a faculdade e se tornar um engenheiro.
O Diabo então novamente aparece e diz:
— Pronto! Você conheceu o Inferno. Agora nada vai ser pior do que isso. Aproveite!
Após todo o descrédito dos pais, familiares e amigos, finalmente o estudante vira engenheiro e sai de sua faculdade. Agora já barbudo, com o rosto cheio de cicatrizes, fruto das duras batalhas, o cabelo mais ralo, mas feliz! Feliz por ter passado por essa guerra.
“E QUE VENHA O RESTO!”, ele grita ao se despedir da faculdade.
* Eu fiz uma história sobre a minha vivência nos anos de Escola Politécnica (Poli) da USP. Inclusive publiquei no meu primeiro livro “Enquanto Conto”. Lembrando que entrei em 1999 ou seja, outros tempos