Racismo na escola deve ser entendido como violência coletiva

Racismo na escola deve ser entendido como violência coletiva

Painel no 8º Congresso Internacional de Jornalismo de Educação da Jeduca aborda a distinção entre práticas racistas e bullying, a efetividade de programas de bolsa, e estratégias para envolver as famílias no debate

Matéria publicada na PORVIR em 03/09/2024

O recente caso de um estudante negro e LGBTQIAPN+ vítima de suicídio em uma escola de elite da capital paulista reacendeu o debate sobre o racismo vivenciado por pessoas pretas no ambiente escolar. Diversas escolas do Brasil possuem programas educativos antirracistas que, nem sempre, surtem o efeito necessário. 

Entre os entraves para endereçar corretamente ações voltadas para essa temática está a dificuldade que muitas escolas têm em diferenciar o que é bullying e o que é racismo. Edineia Gonçalves, socióloga e coordenadora executiva da Ação Educativa, ressaltou que essa questão acaba sendo central para quem deseja desenvolver uma prática antirracista. 

Ela participou de uma conversa sobre racismo nas escolas no 8º Congresso de Jornalismo de Educação da Jeduca (Associação de Jornalistas de Educação), nesta terça-feira (3), em São Paulo (SP). A atividade teve mediação da jornalista Cinthia Gomes, diretora da Agência Mural de Jornalismo das Periferias

Para Edineia, as pessoas estão mais habituadas usar o conceito de bullying porque há mais espaço para discussão e um número significativo de formações e procedimentos de como lidar com isso na escola. Por outro lado, muitas escolas ainda patinam quando o tema é racismo porque não houve a mesma dedicação formativa no tema. 

Diferentemente de casos de bullying, que geralmente atingem apenas um alvo, o racismo é um ataque direto a todo um grupo social. Dessa maneira, Edineia salienta que crimes raciais nunca são sentidos individualmente e não devem ser tratados como tal. 

“O racismo é uma violência coletiva. Quando a violência tem fundo racista, é preciso mobilizar a comunidade inteira. Se [o ato] é coletivo, o trato precisa ser coletivo, trabalhando a partir do reconhecimento de que o racismo é crime”, afirmou.

Daniel Helene, coordenador pedagógico dos anos iniciais do ensino fundamental na Escola Vera Cruz, também presente na ocasião, reforçou que apesar de reconhecer o papel fundamental da escola – em um sentido amplo do termo –, também entende que “historicamente, no Brasil, ela recria o racismo, reforça as desigualdades e colabora para manter os privilégios e as opressões”. 

O coordenador destacou que a escola faz isso quando invisibiliza situações de violência racista que acontecem em seu cotidiano; quando perpetua um currículo que celebra a agência e subjetividade dos brancos, ao mesmo tempo em que apresenta negros, indígenas e outros grupos em posição subalterna; e quando trazem materiais didáticos e da cultura em geral que reforçam esses posicionamentos. 

Recentemente, a escola onde ele atua esteve no centro do debate após a filha de 14 anos da atriz Samara Felippo sofrer ataques racistas de duas outras estudantes. O caso ganhou repercussão midiática e levantou questionamentos sobre a expulsão ou não das alunas. 

“Noticiar as situações específicas e se indagar sobre o que, pontualmente, a escola faz em relação a elas, é parte importante do processo, mas se a cobertura jornalística ficar apenas nisso, no meu modesto entendimento, contribuirá para a perpetuação da ideia falsa (e perversa) de que o racismo está apenas naqueles que praticaram a agressão racista e que, portanto, precisam ser ‘neutralizados’”, afastados do convívio social, para que todos possamos voltar a viver em uma comunidade livre de racismo (o que só existe enquanto idealização)”, afirmou. 

A jornalista Renata Cafardo, repórter especial e colunista de educação do O Estado de S. Paulo e presidente da Jeduca, foi uma das primeiras a noticiar o caso ocorrido na Vera Cruz. Ela ressaltou que, ao abordar esses temas, os jornais devem agir com responsabilidade, defendendo que o debate não deve ocorrer apenas quando algum incidente acontece.

Programas de bolsas de estudo

Ao refletir sobre o ingresso de estudantes negros por meio de bolsas de estudo, principalmente em escolas de elite, é preciso estar atento a outras demandas que vão além da matrícula desse estudante na escola. 

“Os projetos antirracistas que têm mais chances de resultar em algo positivo para os estudantes negros, são os que se concebem mais sistêmicos. A ideia de que vamos apenas franquear a entrada de alunos garantindo bolsa é falsa”, argumentou Daniel. 

Ele destacou da importância de observar toda a experiência estudantil, que vai além do que está previsto no currículo, mas também envolve a presença de uma equipe diversa, as referências que os estudantes encontram ao chegar na escola e a conexão que conseguem fazer com o que aprendem e suas próprias vidas. 

“Mais do que trazer um colorido diferente para a escola, que pode se caracterizar como tokenismo, [incluir bolsas] é também uma oportunidade de trazer pessoas que tenham um conhecimento importante para que aquela escola aprimore a qualidade educacional”, ressaltou Edineia. O termo tokenismo se refere a uma pessoa ou organização que faz um esforço mínimo para parecer inclusiva ou diversa, de forma superficial ou simbólica, sem promover mudanças significativas de verdade.

O sentido da existência de bolsas e ações afirmativas nas escolas, para a educadora, não é o de mostrar o quanto as instituições são caridosas, mas sim o de funcionar como um mecanismo de ampliação de conhecimentos, a partir de tudo o que essa pessoa traz em sua bagagem e trajetória de vida.

“Acolhimento não é um abraço quentinho. É acolher histórias, memórias e o caminho que faz com que essa escola diversa realize sua função social de construir aprendizagens significativas para todo mundo. Quando eu acolho, me interesso sinceramente pelo saber do outro”, disse. 

Ela também chamou a atenção para a necessidade de reconhecer o lugar das pessoas brancas na luta antirracista. “Racismo não é problema de preto, é problema de uma sociedade racista, e todos têm lugar nessa construção.”

Halitane Rocha, editora do site Mundo Negro e que também esteve no debate, argumentou que, por mais desconfortáveis que sejam as discussões, elas precisam ser feitas. E a repercussão que os casos têm também deve ser racializada. Ela comparou, por exemplo, as diferenças de impacto na notícia de racismo sofrido pela cantora Negra Li em uma loja de roupas e as relacionadas à atriz Samara Felippo. 

Família e escola 

Ao ser questionada sobre como a escola pode lidar com famílias racistas, Edineia Gonçalves ressaltou que, se a escola tem um posicionamento antirracista, ele deve perpassar todas as instâncias do atendimento escolar, desde a gestão até a formação docente. 

“E sobretudo trazendo outros atores importantes para discutir dentro da escola como se constrói a resistência ao racismo. Os pais racistas precisam ser confrontados com seu racismo, porque o racismo à brasileira é muito dito, mas pouco apontado”, disse. 

Ela argumenta que é preciso trazer essas outras vozes para pensar conjuntamente ações, a partir de uma perspectiva de quem também vive na pele essas situações.