Há caminhos para a construção de uma educação pública de qualidade?
Matéria publicada no Nexo em 01/10/2024
A educação infantil é uma das principais competências (e obrigação) do município. Nessa etapa, as crianças iniciam sua trajetória escolar. Cabe à escola desenvolver um trabalho de formação integral dos estudantes, envolvendo a leitura e a escrita, de modo a garantir integração e continuidade do processo de aprendizagem no ensino fundamental
Historicamente, um dos maiores desafios do Estado é garantir escola pública de qualidade para todos. Desde 1988, nossa Constituição Federal assegura a educação como direito de todos e dever do Estado e da família 1 . Além disso, o documento com as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (2013) aponta que o acesso e permanência para a conquista da qualidade social da educação brasileira:
[…] é uma conquista a ser construída de forma negociada, pois significa algo que se concretiza a partir da qualidade da relação entre todos os sujeitos que nela atuam direta e indiretamente 2 . Significa compreender que a educação é um processo de socialização da cultura da vida, no qual se constroem, se mantêm e se transformam conhecimentos e valores. Socializar a cultura inclui garantir a presença dos sujeitos das aprendizagens na escola. Assim, a qualidade social da educação escolar supõe a sua permanência, não só com a redução da evasão, mas também da repetência e da distorção idade/ano/série. (p. 20-21, grifos da autora).
O trecho citado trata da garantia de três aspectos fundamentais: acesso, permanência e aprendizagem para todos os sujeitos. Em relação ao acesso à escola, uma pesquisa recente 3 evidenciou o crescimento no percentual de crianças de 4 a 5 anos frequentando a escola em 2023, saltando de 91,5% (2022) para 92,9% no ano passado. Já na faixa etária entre 6 e 14 anos, observou-se uma forte queda no percentual de crianças matriculadas, de 99,4% (2022) para 94,6%.
Vale apontar que estamos tratando de questões bastante complexas, que envolvem a gestão municipal e a sociedade como um todo. É possível definir políticas públicas que sejam efetivadas ao longo dos próximos quatro anos e construir um trabalho que possa ter continuidade
Outro dado recente (e preocupante), divulgado pelo governo federal, apontou que apenas 56% das crianças brasileiras das redes públicas alcançaram o patamar de alfabetização 4 definido para o 2º ano do ensino fundamental, em 2023. Vale trazer aqui mais um dado divulgado pela pesquisa citada anteriormente em relação à taxa nacional de analfabetismo 5 , que diminuiu de 5,6%, em 2022, para 5,4%, em 2023. No entanto, tal informação evidenciou algo alarmante: a taxa entre negros é mais do que o dobro da registrada entre brancos.
Diante desse cenário, as questões relacionadas à garantia de uma educação pública de qualidade ganham maior relevância.
Com a proximidade do pleito eleitoral municipal, as propostas apresentadas e as discussões em torno dessas questões aparecem no debate, mas, muitas vezes, de forma bem tímida. Além disso, boa parte dessas propostas se distanciam das realidades vividas nas escolas públicas e muitas delas sequer foram planejadas por profissionais da educação.
As gestões futuras terão diante de si uma enorme tarefa, pois serão as responsáveis diretas pelas duas primeiras etapas da educação básica: a educação infantil e o ensino fundamental 6 . Ou seja, os dados apontados anteriormente estão diretamente relacionados à gestão municipal.
A educação infantil é uma das principais competências (e obrigação) do município. Nessa etapa, as crianças iniciam sua trajetória escolar. Cabe à escola desenvolver um trabalho de formação integral dos estudantes, envolvendo a leitura e a escrita, de modo a garantir integração e continuidade do processo de aprendizagem no ensino fundamental.
Vale apontar que estamos tratando de questões bastante complexas, que envolvem a gestão municipal e a sociedade como um todo. É possível definir políticas públicas que sejam efetivadas ao longo dos próximos quatro anos e construir um trabalho que possa ter continuidade, mesmo sabendo que não será possível resolver todos os problemas numa única gestão (ou em 8 anos, considerando a possibilidade da reeleição). Mas é preciso que se invista, que se assuma um compromisso público em busca de uma educação pública de qualidade, garantindo a todos acesso, permanência e aprendizagem.
Essa conquista é um processo, um longo trabalho que envolve todos os sujeitos que nela atuam direta e indiretamente. Outros setores que atuam na gestão pública precisam ser implicados, como a Secretaria da Saúde, a assistência social, o conselho tutelar, entre outros. Para atender de forma integral as crianças e os jovens, a educação é um espaço propício para o estabelecimento de uma parceria e atuação intersetorial.
Para efetivar esse compromisso com a educação, um caminho é a mobilização dos diferentes agentes (público, privado e a sociedade civil) na definição, apropriação, acompanhamento, monitoramento e continuidade das políticas públicas para não correr o risco de as ações tornarem-se apenas programas de um governo 7 .
Faz-se necessário envolver a comunidade escolar nessas discussões e questionar: qual é a escola pública que queremos construir? Já as mães, pais e responsáveis, perguntar: que escola desejam para seus filhos e filhas?
Se desejamos a formação integral dos estudantes, se queremos uma escola a que todos tenham acesso e permanência, em que a diversidade (de todos os tipos) seja bem-vinda, as decisões serão tomadas em função desses propósitos. Assim, um grande desafio dos gestores municipais é garantir coerência e continuidade das políticas públicas educacionais a partir dessa escola que todos desejam construir.
Diante de um problema complexo, como a alfabetização, por exemplo, não há possibilidade de existir uma solução fácil para resolvê-lo!
Como aponta a resolução CNE/CP, n. 2, Art.12: […] no primeiro e no segundo ano do Ensino Fundamental, a ação pedagógica deve ter como foco a alfabetização, de modo que se garanta aos estudantes a apropriação do sistema de escrita alfabética, a compreensão leitora e a escrita de textos com complexidade adequada à faixa etária dos estudantes […] 8 .
Portanto, a formação desses estudantes implica participar e atuar nas diversas práticas sociais de leitura e escrita interagindo com outros leitores e escritores, aprendendo a ler e escrever a partir dos diferentes materiais e suportes de leitura.
Um grande desafio dos gestores municipais é garantir coerência e continuidade das políticas públicas educacionais a partir dessa escola que todos desejam construir.
Sendo assim, não é possível acreditar que um aplicativo, uma plataforma de leitura ou um material didático serão capazes de cumprir a meta de alfabetizar todas as crianças. Não é possível que esses instrumentos substituam a ação didática de uma professora bem-preparada. Ou seja, ao custo desses materiais, vale investir na formação inicial e continuada dos educadores. Se é que teremos professor para alfabetizar nossas crianças diante de um cenário tão desafiador…
Quem irá escolher o magistério para atuação profissional? Relatório divulgado recentemente 9 pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), indicou que os professores que atuam nos anos finais do Ensino Fundamental no Brasil recebem salários que representam quase a metade dos docentes dos países da OCDE. O relatório ainda apontou que os brasileiros trabalham mais horas e têm turmas mais cheias.
Por fim, vale destacar que a construção de uma educação pública de qualidade impactará a sociedade como um todo. Todos ganham, independentemente, se estudarem (ou seus filhos, parentes etc.) em escolas públicas.
Carla Tocchet é professora da pós-graduação em alfabetização no Instituto Vera Cruz, directora de tesis na maestria em Escritura y Alfabetización na Universidad Nacional de La Plata, conselheira e integrante da Comissão Editorial da Rede Latino-Americana de Alfabetização. Atuou como formadora da equipe central do Programa Ler e Escrever na Secretaria da Educação do Estado de São Paulo.