Caminhos

Marcelo Batista Nery, doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

A minha jornada aqui tem início ao revisitar a história dos meus avós, mas logo percebo que é impossível, nunca os conheci. Infelizmente, não posso relatar como suas vidas influenciaram meus pais e, consequentemente, o meu próprio caminho. Apesar das dificuldades em reconstruir a história familiar, destaco o abandono que levou meu pai ao Serviço de Atendimento dos Menores no Rio de Janeiro na década de 1940. Além disso, ressalto a resiliência dos meus bisavôs maternos, negros alforriados que cruzaram caminhos com o bando de Lampião e Maria Bonita, conforme as histórias orais que se propagam por gerações nas conversas familiares. E minha mãe, uma corajosa adolescente preta que migrou do sertão baiano para a cidade de São Paulo em busca de oportunidades.

Imagens do manual do calouro da USP, ano 1997 – Foto: Arquivo Pessoal

Nasci na década de 1970, único filho de um casal com idades já avançadas para o início da parentalidade. Meus primeiros anos foram vividos onde minha mãe trabalhava como empregada doméstica. Graças à luta e esforço, conseguimos comprar um terreno na zona sul da capital paulista, um bairro inicialmente carente de infraestrutura. Apesar do ambiente desafiador em que cresci, meus pais garantiram minha conclusão do ensino fundamental sem a necessidade de contribuir financeiramente.

Consegui cursar o ensino médio entre 1989 e 1992, uma jornada dedicada que resultou na minha formação em Ciências Contábeis. O colégio oferecia cursos profissionalizantes, e a opção pela contabilidade parecia natural, considerando a perspectiva de emprego. Ingressei em um escritório contábil, e a necessidade de ensino superior logo surgiu. Consciente das lacunas, busquei um curso pré-vestibular com o objetivo de entrar na Universidade de São Paulo (USP), mas o sucesso não veio. Prestei vestibular para administração na PUC-SP, fui aprovado com bolsa de estudos e iniciei o curso em 1995.

No decorrer de 1996, insatisfeito com minha graduação e trabalho, decidi mudar minha história e iniciar uma carreira acadêmica. Enfrentei desafios como falta de tempo e dinheiro para o pré-vestibular, além do medo de perder o emprego. Apesar do receio de abrir mão de uma carreira “segura”, a valorização da educação pela minha família foi crucial. Optei por um curso que reunisse meus interesses e fosse desafiador. Aprovado na Fuvest, ingressei na USP em 1997, tornando-me estudante de Ciências Sociais e desempregado. Após meses em busca de emprego, consegui uma posição na área administrativa conciliando com as demandas da nova graduação. As lacunas na minha formação tornaram-se um desafio ao final do primeiro ano, mas em 1998, um estágio na Secretaria de Planejamento da prefeitura de São Paulo (Sempla-SP) foi crucial, permitindo-me dedicar-me às atividades acadêmicas e cursos complementares.

Em 2000, tornei-me estagiário na extinta Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa), conciliando com responsabilidades na Sempla-SP. Após o estágio na Sempla, fui estagiário na Emplasa e na Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade). Ao final do estágio na Emplasa, consegui uma vaga como bolsista no Núcleo de Pesquisa em Informações Urbanas (Infurb) da USP. Mantive o trabalho na Seade e no Infurb, mas a bolsa deste último estava garantida apenas até o final do ano, exigindo urgência na busca por outra ocupação. No início de 2001, iniciei um estágio no Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP), colaborando com projetos sobre crimes e violações de direitos. Ao final do ano, completei os créditos para concluir o bacharelado e decidi iniciar a licenciatura. Mantive dois estágios simultaneamente e considerei o mestrado, alinhando o projeto à geoinformação para análises de violência. Em janeiro de 2002, fui convidado a integrar a equipe da Fundação Seade como pesquisador em tempo integral, deixando o cargo de estagiário.

Refletindo sobre 2003, destaco a importância da conexão com profissionais do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) por meio de atividades conjuntas com a Seade, fundamental para minha carreira acadêmica. No início do ano, com a primeira versão do projeto de mestrado, preparei-me para o processo seletivo em sociologia na USP, buscando avaliação de especialistas do INPE devido ao uso de sistemas de informação geográfica. Surpreendentemente, fui convidado para viabilizar o projeto mestrado em sensoriamento remoto do INPE, iniciando a jornada em 2004. Ao longo de 2005, dediquei-me à dissertação, focando na avaliação do sensoriamento remoto em estudos urbanos, resultando em um Sistema de Informações Geográficas (SIG) para analisar a dinâmica espacial dos homicídios em São Paulo. A dissertação foi defendida em abril de 2006, e menos de um mês depois, já estava trabalhando.

Em 2008, retornei ao NEV-USP integrando o grupo de pesquisadores focado em questões quantitativas. Essa experiência se tornou crucial para minha carreira acadêmica. Desde 2000, o núcleo participava do programa “Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão” (Cepid) da Fapesp. Com o encerramento do programa em 2011, participei ativamente das discussões para o relatório final e da construção de uma nova proposta para o próximo edital de pesquisa Cepid, enriquecendo minha compreensão sobre a pesquisa de grande porte. Em 2011, recebi o convite para tentar o doutorado em Sociologia pelo Professor Dr. Sergio Adorno, coincidindo com meu processo seletivo para a pós-graduação. Durante esse período, o NEV-USP também concorria a um novo Cepid, e ambos fomos selecionados.

Em 2012, iniciei meu doutorado e fui aprovado nas disciplinas e na qualificação da tese. A boa aceitação resultou na transformação da revisão bibliográfica em um artigo, convite para contribuir em um capítulo de livro e aproximação com a professora Teresa Caldeira (UC Berkeley). Essa aproximação levou-me à Califórnia, minha primeira experiência internacional, na renomada UC Berkeley. Retornei ao Brasil em 2015, a tese foi aprovada em 2016, e desde então, estou no NEV-USP, dedicando-me à pesquisa e inovação.

Hoje, quase 30 anos após o meu primeiro passo na USP, reflito sobre mais de 15 anos de trajetória profissional ligada à minha carreira acadêmica. Coordenei projetos, desenvolvi pesquisas quali-quantitativas, analisei dados e disseminação de conhecimento. Com experiência docente em diversos órgãos e institutos, lecionei variados cursos e contribuí para importantes instituições de pesquisa ao longo do caminho. Fui pesquisador colaborador do Centro de Síntese USP Cidades Globais, do Instituto de Estudos Avançados (IEA), e sou pesquisador do Programa de Fellowship da ABES, integrando o Think Tank “Centro de Inteligência, Políticas Públicas e Inovação”, em parceria com IEA- USP. Além disso, ocupo a posição de Coordenador de Transferência de Tecnologia e Head do Centro Colaborador da OPAS/OMS (BRA-61) no NEV-USP.

E a jornada continua!

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