A importância de professores leitores e escritores no ensino de leitura e escrita
Artigo publicado no NEXO por Márcia Fortunato e Maria José Nóbrega em 04/11/2024
Ensinar leitura e escrita de forma eficaz exige que o professor seja também um leitor e escritor ativo
A formação de leitores e escritores em espaços educativos é uma tarefa de extrema complexidade, e o papel do professor nesse processo é central. Ao refletir sobre a questão “É possível ensinar a ler e a escrever se o professor não for ele próprio um leitor e um escritor?”, deve-se analisar não apenas as habilidades técnicas, mas também o envolvimento pessoal do docente com a leitura e a escrita. Ensinar a ler e a escrever vai além do ensino formal das letras, pois envolve inspirar, orientar e fomentar o pensamento crítico dos alunos. A afirmação de que professores que ensinam leitura e escrita devem ser também leitores e escritores pode ser analisada e justificada por diversos pontos de vista.
A linguagem como prática social
Sob uma perspectiva dialógica, a linguagem é concebida como uma prática social e interativa, não um sistema formal isolado. O ensino da língua, nesse sentido, não pode ser apenas técnico ou gramatical. Ele deve estar ligado às práticas sociais da linguagem, envolvendo a compreensão das interações humanas, contextos e gêneros discursivos. O professor, como mediador dessa prática, precisa ser um exemplo vivo de como se utiliza a linguagem no dia a dia.
Isso reforça a ideia de que, para ensinar a ler e a escrever, o professor precisa ter uma relação profunda e contínua com essas práticas, caso contrário, pode acabar ensinando a língua de forma mecânica, sem demonstrar a riqueza da comunicação que vai além das regras formais.
Ler e escrever: competências que exigem experiência pessoal
A leitura e a escrita são processos interativos que vão além da simples decodificação de símbolos; envolve interpretação, reflexão e produção de sentido. Uma abordagem interacionista incentiva a curiosidade e promove a profundidade necessária para a formação de leitores autônomos.
Enquanto o processo de escrita exige que o autor concentre suas escolhas e decisões linguísticas para transformar em texto a ideia que tem em mente, explorando formas de expressar seu pensamento, o processo de leitura faz o movimento inverso: relaciona o que é lido com as referências do leitor, seus conhecimentos linguísticos e saberes no campo de conhecimento ao qual o texto pertence.
Para o leitor, o texto se abre em possibilidades de interpretação, enquanto o escritor trabalha intensamente para dar forma ao pensamento que tem, aquele e não outro. Esse é o grande jogo entre leitura e escrita. Para o escritor importa ler para conhecer como outros escritores solucionaram seus dilemas, para o leitor importa escrever para se aproximar do dilema do escritor e, assim, fazer correlações conscientes entre o texto lido e aquele outro que escreve em sua mente enquanto lê.
Assim, a prática de escrita não se restringe à reprodução de modelos textuais formais. Ela envolve a capacidade de expressar ideias, argumentar e construir narrativas de maneira clara e coesa, considerando o universo discursivo de que participa, o contexto de produção do escritor e suas opções histórico-ideológicas. A leitura não se limita à decodificação da escrita, mas um exercício que envolve a compreensão dos contextos linguístico, histórico e social em que o texto se insere, além, e sobretudo, do contexto discursivo de que faz parte e do diálogo que estabelece com outras obras e outros autores.
Dada a subjetividade implicada nessas atividades, viver ambas as experiências é um pressuposto para quem ensina leitura e escrita.
A função crítica da linguagem no ensino
Uma das funções mais importantes do ensino de leitura e escrita é despertar a capacidade crítica nos alunos. Isso está diretamente ligado ao conceito de compreensão ativo-dialógica da linguagem, em que o sentido é produzido nas interações e contextos sociais. Quando o professor é um leitor e escritor ativo, ele traz para a sala de aula uma abordagem viva e crítica da linguagem, sendo capaz de desmascarar ideologias e engajar os alunos em discussões sobre temas relevantes.
Essa dimensão crítica implica que o professor não só ensina a leitura e a escrita como técnicas, mas como ferramentas para a compreensão do mundo e para a ação social e expressiva. Professores que vivenciam a leitura e a escrita em suas próprias vidas têm uma visão mais aprofundada de como essas ferramentas podem ser usadas para engajar os alunos em discussões sobre temas relevantes.
A influência do professor leitor e escritor
Os estudantes observam e, muitas vezes, imitam o comportamento dos professores. Nesse contexto, é inegável que um professor que pratica e valoriza a leitura e a escrita serve como um modelo inspirador para seus alunos. Através do exemplo, o professor demonstra o valor dessas práticas não apenas como exigências escolares, mas como atividades prazerosas e fundamentais para o desenvolvimento pessoal e profissional.
Quando o professor compartilha suas próprias experiências de leitura e escrita, ele cria um ambiente onde essas práticas são vistas como parte integrante da vida. Isso torna a aprendizagem mais significativa para os alunos, pois percebem que a leitura e a escrita não se restringem ao ambiente escolar, mas são essenciais em todas as esferas de atuação social.
Portanto, é possível afirmar que, embora o ensino técnico da leitura e escrita possa ser realizado por um professor que não é um leitor ou escritor frequente, a profundidade e a qualidade desse ensino são drasticamente afetadas. Professores que não mantêm uma prática constante de leitura e escrita podem limitar o desenvolvimento crítico e criativo dos alunos, oferecendo uma visão restrita da linguagem.
Ensinar a ler e a escrever não é apenas uma questão de transmitir conhecimentos técnicos; é necessário inspirar, guiar e demonstrar as múltiplas funções da linguagem no contexto social. Para isso, é essencial que o professor seja ele próprio um leitor e um escritor, capacitado a mediar e enriquecer a experiência de seus alunos com a leitura e a escrita.
Com o crescimento dos estudos sobre escrita criativa no Brasil e o surgimento de oficinas e cursos, hoje é possível ter acesso a importantes descobertas sobre o funcionamento dos processos de escrita. Adotar a perspectiva de escritor e, a partir dessa posição, tanto apreciar as obras de outros autores quanto entender a dinâmica da produção textual por meio da própria experiência, pode iluminar muitos aspectos, tanto da escrita como da leitura, que nem sempre são perceptíveis para os que não ocupam essa posição.
Ser autor implica não apenas maior controle sobre o próprio pensamento e autonomia para expressá-lo por escrito, mas também a capacidade de ler outros autores com a visão de quem compartilha os desafios da escrita: as decisões para alcançar o efeito desejado, a escolha de estratégias de construção do texto e o cuidado na seleção precisa das palavras. Ser autor vai além do domínio da língua, da gramática e das estruturas linguísticas; requer engajamento emocional, percepção de mundo e desejo de criar e comunicar. Assim, quem cultiva o hábito de ler e escrever está mais preparado para compreender os dilemas enfrentados pelos aprendizes.
Ler e escrever são atos de transformação. Professores que vivenciam essas práticas inspiram seus alunos a enxergarem a linguagem como uma ferramenta de mudança social.
BIBLIOGRAFIA
- Bakhtin, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
- Bakhtin, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.
- Barthes, Roland. O rumor da língua. Tradução António Gonçalves. Lisboa: Edições 70, 1987.
Márcia Fortunato é graduada em letras, doutora em educação pela USP e, desde 2011, é coordenadora da pós-graduação lato sensu Formação de Escritores, do Instituto Vera Cruz.
Maria José Nóbrega é mestra em filologia e língua portuguesa pela USP e atua como assessora em didática e metodologia na área de linguagens, colaborando com escolas e editoras. Desde 2009, é professora na pós-graduação do Instituto Vera Cruz.