Crianças expostas, escolas em alerta: como reconstruir a convivência ética em tempos de crise
Nas últimas semanas, uma minissérie de ficção parece ter colocado o dedo em uma ferida real. Adolescência, drama britânico lançado pela Netflix, narra o julgamento de um menino de 13 anos acusado de assassinar uma colega de classe. O que parecia uma tragédia isolada ganha contornos mais amplos à medida que redes sociais, discursos de ódio, abandono emocional e subculturas juvenis se entrelaçam no enredo. A série virou um espelho incômodo, e necessário, para escolas, famílias e pesquisadores que alertam sobre o colapso das relações humanas na infância e adolescência nos últimos anos.
Intensificando o tema, o Ministério da Educação (MEC) declarou abril como o “mês da convivência ética nas escolas”. A medida, embora simbólica, reforça a urgência da pergunta: como educar para o convívio em uma sociedade esgarçada por violência, intolerância e abandono afetivo?
No Centro Educacional Pioneiro, escola na zona sul de São Paulo, essa preocupação vem de longa data. A instituição desenvolve um programa estruturado de convivência ética como prática pedagógica contínua. “Queremos formar alunos capazes de tomar decisões morais conscientes, que saibam se proteger e proteger colegas em situações de conflito”, afirma Mário Fioranelli, diretor do Ensino Fundamental e Médio. As aulas de convivência ética são espaços de escuta e reflexão, onde os estudantes analisam dilemas reais, discutem empatia, justiça e respeito mútuo. Além disso, assembleias escolares e equipes de ajuda, formadas por alunos voluntários, contribuem para um ambiente mais seguro e solidário.
“Mantemos um atendimento individualizado para apoiar estudantes em situações emocionais delicadas. Isso acontece há anos! É uma estratégia silenciosa, mas essencial para prevenir violências simbólicas e afetivas”, diz Mário.
Essa mesma escuta ativa está presente na Escola Vera Cruz. Ana Bergamin, coordenadora pedagógica do Ensino Médio, observa que trabalhar a convivência não é uma resposta emergencial, mas uma construção pedagógica. “Temos rodas de conversa, assembleias, momentos de mediação entre os alunos e espaço para que eles participem ativamente das decisões coletivas”, relata. Segundo ela, o desafio está em formar jovens que se percebam como agentes morais e éticos, mesmo em um mundo onde as fronteiras do respeito parecem cada vez mais borradas. Débora Rana, coordenadora dos anos finais do Ensino Fundamental no Vera Cruz, complementa: “Com os menores, o trabalho é ainda mais delicado. A escuta, o acolhimento e o reconhecimento das emoções são fundamentos do nosso cotidiano.”
Na Escola Tarsila do Amaral, o cuidado com a primeira infância também é eixo estruturante. Para a coordenadora pedagógica Patrícia Bignardi, é impossível falar de convivência ética sem considerar a construção da identidade desde cedo. “Trabalhamos muito as diferenças: de corpo, de cor, de gosto, de jeito de ser. As crianças aprendem que todos somos diferentes e que essa diversidade deve ser acolhida, não negada.” Ela relata que, mesmo na educação infantil, aparecem situações de racismo e exclusão, muitas vezes repetindo falas ou posturas absorvidas em casa. O trabalho da escola, então, envolve não só a criança, mas também sua família e o coletivo ao redor.
Para Mônica Bayeux, coordenadora pedagógica do Ensino Fundamental no Colégio Magno, os conflitos foram intensificados com a suspensão do uso de celulares. “Apostamos na escuta ativa e na mediação diária junto aos alunos. A gente precisa formar e, dentro do nosso plano de convivência, uma das estratégias é trabalhar com os espectadores de episódios de violência, e não apenas com os envolvidos diretos. É na plateia que mora a chance de transformação.”
Essa dimensão familiar do problema ganha ainda mais complexidade quando se observa o fenômeno do sharenting — a exposição exagerada de crianças nas redes sociais por pais e responsáveis. Segundo estudo da UniCesumar (PR), divulgado pela Agência Bori, mais de 80% das crianças ocidentais já têm presença online antes dos dois anos de idade. O levantamento mostra que essa exposição precoce pode gerar sentimentos de vergonha, desconexão com a própria identidade e aumentar a vulnerabilidade a crimes digitais. O paradoxo é que muitos pais, preocupados com a segurança digital dos filhos, são os mesmos que impulsionam essa exposição. O resultado é uma infância digitalmente invadida e emocionalmente fragilizada.
Adriana Ramos, especialista em psicologia moral e coordenadora da pós-graduação em Relações Interpessoais no Instituto Vera Cruz, acredita que o momento exige um novo pacto coletivo. “A convivência ética precisa ser planejada como se planeja o currículo escolar. Não é uma ação pontual, mas uma cultura que se constrói com intencionalidade, tempo e coerência.” Ela coordena pesquisas e formações que analisam o impacto da convivência escolar no desenvolvimento da personalidade moral de crianças e adolescentes. Para ela, o maior erro das escolas é esperar o conflito acontecer para agir. “Quando a escola atua apenas como bombeiro, perde a chance de construir uma comunidade.”
A psicóloga e diretora do Colégio Magno, Claudia Tricate, compartilha da opinião da especialista, mas reforça a dificuldade que as escolas têm enfrentado junto às famílias. “Quando a escola chama o responsável para conversar sobre alguma inadequação do estudante, muitos não aceitam e defendem o indefensável”, diz. E com isso, segundo Tricate, entregam filhos sem autonomia, sem filtro moral e sem resiliência.
Ainda assim, ela aposta na esperança. “Estamos construindo um manual interno de convivência, com tudo que estamos aprendendo. Precisamos reconectar os alunos com aquilo que é belo, coletivo e solidário.”