Nunca foi tão urgente ensinar crianças e adolescentes a conviver. Com os indicadores de saúde mental infantojuvenil em queda livre, escolas enfrentam um cotidiano tenso: estudantes mais ansiosos, famílias mais reativas, vínculos sociais enfraquecidos e relações atravessadas por hiperconexão digital, exclusão e violência simbólica. Em um país onde os casos de suicídio e autolesão entre jovens não param de crescer, educadores se veem diante de uma pergunta essencial: como fazer da escola um espaço real de pertencimento, escuta e segurança emocional?
A resposta pode estar no fato de que muitas instituições ainda negligenciam a convivência ética como um projeto pedagógico estruturante. “Ela não pode ser uma ação pontual, mas sim uma cultura escolar cultivada cotidianamente”, diz Adriana Ramos, coordenadora da pós-graduação As Relações Interpessoais na Escola, no Instituto Vera Cruz, e especialista em convivência ética.
Segundo dados da Fundação Oswaldo Cruz, entre 2011 e 2022, as taxas de suicídio entre jovens de 10 a 24 anos aumentaram 6%, enquanto os casos de autolesão subiram 29%. De 2000 a 2021, mais de 3.200 crianças entre 5 e 14 anos tiraram a própria vida no Brasil. Em 2023, pela primeira vez, os atendimentos por transtornos de ansiedade entre adolescentes superaram os de adultos: 157 a cada 100 mil entre jovens de 15 a 19 anos, contra 112,5 entre maiores de 20.
Levantamento do Datafolha mostrou ainda que 13% dos jovens entre 16 e 24 anos avaliam sua saúde mental como ruim ou péssima — o maior índice entre todas as faixas etárias. A convivência escolar, nesse cenário, já não é apenas uma questão de disciplina: é uma necessidade urgente de saúde pública.
No Centro Educacional Pioneiro, na zona sul de São Paulo, a convivência ética está integrada ao projeto pedagógico. A escola promove aulas específicas sobre o tema, realiza assembleias escolares e mantém equipes de ajuda formadas pelos próprios alunos, que atuam na mediação de conflitos e na escuta ativa entre os colegas. “Queremos formar estudantes que saibam se proteger e proteger os outros, com empatia e consciência moral”, afirma o diretor pedagógico Mário Fioranelli. “Também oferecemos apoio emocional individualizado. É uma estratégia silenciosa, mas essencial.”
O trabalho realizado ali foi reconhecido internacionalmente. Em 2023, os professores Carolina Vendramini e Renato Ranieri apresentaram o projeto Mediação na International Conference of Research in Education (IRED’23), na Espanha. O capítulo com as experiências do Pioneiro foi incluído no livro Investigación educativa en red frente a los desafíos de la educación, publicado pela Universidade das Ilhas Baleares. O título — “La escuela que tenemos y la que queremos: los conflictos como oportunidad de aprendizaje” — resume bem a proposta: tratar o conflito como parte legítima e potente do processo educativo.
O mesmo entendimento está presente na Escola Vera Cruz. “A convivência não é uma resposta emergencial, mas parte da construção da cultura escolar”, explica Ana Bergamin, coordenadora pedagógica do Ensino Médio. Com rodas de conversa, mediações e decisões coletivas, os alunos são estimulados a participar ativamente da vida escolar. Já nos anos finais do Ensino Fundamental 1, a coordenadora Débora Rana destaca: “Escuta, acolhimento e reconhecimento das emoções fazem parte do nosso cotidiano. É disso que nasce o respeito.”
Na Escola Tarsila do Amaral, a convivência ética começa na educação infantil, mas o contexto social tem imposto desafios maiores. “As crianças de hoje são muito inseguras para lidar com problemas ou com qualquer situação que as tire da zona de conforto”, observa Patrícia Bignardi, coordenadora pedagógica e educadora há mais de 30 anos. Para ela, a culpa não está apenas nas telas, mas no tipo de infância que está sendo permitida pelas famílias. A escola investe na formação contínua dos educadores, na valorização da infância e na potência das assembleias de sala para a mediação dos conflitos.
No Colégio Equipe, em Higienópolis, a convivência ética também é atravessada por experiências que envolvem o território, o cotidiano urbano e o cuidado. Para Ausônia Donato, especialista em saúde pública e diretora da escola, a saúde do aluno está em tudo o que o rodeia — e não apenas nos muros da escola. “Ela deve estar explícita no sorriso da criança, no tamanho da janela do seu quarto, na quantidade de árvores na rua e no número de praças no bairro. Temos de socializar a ideia de que saúde é um direito.” A escola leva isso a sério: a disciplina Saúde Pública faz parte do currículo e propõe, em diferentes situações de ensino-aprendizagem, reflexões sobre bem-estar, relações humanas e cidadania.
No Colégio Magno, a suspensão do uso de celulares nas dependências da escola provocou tensões — mas também abriu novas possibilidades de diálogo. “Apostamos na escuta ativa e na mediação diária”, explica Mônica Bayeux, coordenadora do Ensino Fundamental. “Trabalhamos especialmente com os espectadores dos conflitos, não apenas com os envolvidos diretos. A plateia pode ser agente de transformação.”
A diretora Claudia Tricate chama a atenção para a fragilidade da parceria com as famílias. “Quando chamamos os pais para conversar, muitos defendem o indefensável. Entregam à sociedade filhos sem autonomia, sem filtro moral e sem capacidade de lidar com frustrações.” Ainda assim, ela aposta na reconstrução. “Estamos criando um manual interno de convivência com tudo o que temos aprendido. Queremos reconectar os estudantes com aquilo que é belo, coletivo e solidário.”
A convivência ética também precisa enfrentar os desafios do universo digital. Segundo estudo da UniCesumar, mais de 80% das crianças ocidentais já têm presença online antes dos dois anos de idade, geralmente por iniciativa dos próprios responsáveis. É o fenômeno do sharenting, que escancara a infância nas redes sociais, muitas vezes sem consciência dos impactos futuros.
“O paradoxo é que os próprios pais, ao postarem fotos e vídeos dos filhos, se tornam agentes da fragilização emocional que desejam evitar”, alerta Adriana Ramos, coordenadora da pós-graduação As Relações Interpessoais na Escola, no Instituto Vera Cruz. “Temos uma infância digitalmente invadida e emocionalmente desprotegida. Precisamos resgatar a presença, o vínculo, o olhar.”
Em artigo publicado no Nexo Políticas Públicas, Adriana Ramos e Mariana Tavares, ambas pesquisadoras do Instituto Vera Cruz, defendem que a convivência ética seja planejada com o mesmo rigor dedicado às disciplinas centrais. “É um projeto coletivo, intencional, que exige tempo, coerência e investimento.”
Elas ressaltam que o clima escolar — ou seja, a qualidade das relações que se constroem na escola — tem impacto direto na saúde mental, no desempenho acadêmico e na formação moral. “Quando os alunos se sentem seguros e pertencentes, o estresse diminui, a autoestima cresce e a chance de adoecimento psíquico se reduz.”
Entre as práticas recomendadas estão
- Currículos de educação socioemocional, com foco em empatia, diálogo e resolução de conflitos;
- Formação continuada de educadores para lidar com sofrimento psíquico e exclusão;
- Espaços permanentes de escuta e participação para alunos e famílias;
- Políticas claras contra o bullying e o ciberbullying;
- Parcerias com redes de saúde e proteção social para acolher casos críticos;
- Ambientes físicos e simbólicos acolhedores, que priorizem o bem-estar de todos.
- “O maior erro das instituições de ensino”, alerta Adriana Ramos, “é agir apenas depois que o problema explode. Quando a escola atua como bombeiro, perde a chance de construir comunidade.”