Internet e infância: especialistas pedem foco em ética e autonomia

A divulgação recente de um vídeo do youtuber Felca, que expôs a sexualização de crianças nas redes sociais, reacendeu o debate sobre a adultização e a exposição precoce de crianças e adolescentes no ambiente digital. O caso, que gerou repercussão nas redes, no Congresso Nacional e nas próprias plataformas, trouxe à tona sobre como preparar os jovens para lidar com esse espaço de forma crítica e segura. 

Para Claudia Tricate, diretora do Colégio Magno, o problema começa na incoerência dos próprios adultos. “O mesmo adulto que incentiva uma criança pequena a usar salto, maquiagem ou produtos de beleza é o que, em outro momento, entra numa briga dizendo que o filho é pequeno demais para aquilo. Isso confunde: afinal, sou grande ou pequeno?”, questiona. Segundo ela, esse tipo de contradição fragiliza a construção da autoestima e da autonomia, pilares essenciais para que crianças e adolescentes tomem decisões com mais segurança. 

Adriana de Melo Ramos, pedagoga, especialista em convivência ética e coordenadora do curso de pós-graduação As Relações Interpessoais na Escola, do Instituto Vera Cruz , faculdade que forma professores, ressalta que a criança não tem estrutura cognitiva e moral para compreender as consequências da exposição pública e da sexualização precoce. “Isso mantém a ação guiada por aprovação externa e padrões impostos, ameaça a privacidade e normaliza comportamentos distorcidos”, afirma. Ela cita estudos do psicólogo social Jonathan Haidt que associam a imersão intensa e precoce nas redes ao aumento de ansiedade, depressão e insatisfação com a autoimagem, especialmente entre meninas. 

Ambas as educadoras concordam que a prevenção começa com a formação de competências socioemocionais desde cedo. Claudia destaca a importância de desenvolver autonomia e autoconhecimento, permitindo que a criança faça escolhas, erre e tente novamente. Adriana acrescenta habilidades como autorregulação emocional, empatia, pensamento crítico e noção clara de direitos e deveres digitais. “Também é fundamental trabalhar a capacidade de adiar gratificações, para reduzir a busca por validação imediata que as redes estimulam”, diz. 

O trabalho preventivo, avalia Adriana, deve ser integrado ao currículo das escolas de forma contínua, envolvendo professores, alunos e famílias. “A escola precisa criar espaços de diálogo, preparar os educadores para identificar riscos precocemente e oferecer momentos formativos para as famílias”, explica. Claudia reforça que ética e respeito devem ser trabalhados desde a educação infantil, e não apenas depois de um incidente. “A rede social só replica o que a gente já faz. Se ensinamos respeito no dia a dia, isso se refletirá no ambiente online”, afirma. 

Quando um problema já ocorreu, como no caso de vazamento de imagens, Claudia costuma dizer aos alunos que “ninguém volta para o zero”. Ela explica que, em vez de tentar apagar a história, é preciso aprender a conviver com ela e seguir em frente. Para a especialista do Instituto Vera Cruz, a orientação é combinar ações internas e externas: rodas de conversa e acolhimento para a comunidade escolar e, se necessário, um posicionamento público breve reafirmando o compromisso com a proteção e o bem-estar dos estudantes. 

A recente lei que restringe o uso de celulares nas escolas também tem gerado reflexões. Claudia não concorda com a forma como foi implementada, mas reconhece um efeito positivo: “Fez todo mundo parar para pensar. As famílias começaram a perceber que não adianta só proibir o celular na escola se o uso inadequado continua em casa”. No Magno, a adaptação foi mais tranquila do que o esperado, e muitos alunos relataram melhora no foco e no aprendizado. 

Entre os sinais de que o uso das redes pode estar afetando negativamente crianças e adolescentes, Adriana cita alterações de humor, queda no desempenho escolar, isolamento, preocupação excessiva com aparência ou popularidade online e distúrbios de sono e alimentação. A recomendação é agir com sigilo e cuidado, conversando com o aluno, acionando a família e oferecendo suporte psicológico.