Por Rodrigo Barbosa e Silva
O documentário O Dilema das Redes, que foi traduzido do original inglês The Social Dilemma, trouxe a público a discussão que há tempos ocorre nos meios acadêmicos e nas comunidades de computação: o uso de dados pessoais por grandes plataformas de tecnologia. Embora o termo redes tenha sido usado no título em português, o que estávamos vivendo na atualidade é mesmo “O dilema social”: a contínua digitalização de processos da vida coletiva tem levado a uma coleta desenfreada de dados para classificar e entender profundamente o comportamento e desejos das pessoas.
Essa coleta começa a ficar mais evidente nas escolas, principalmente com a inesperada pandemia que levou o principal lugar de educação dos ambiente físico escolar para a internet. Do dia para a noite, escolas começaram a fazer uso ainda mais intenso de plataformas para continuarem as atividades com alunos. As famílias também perceberam que estudantes ficaram dependentes quase que exclusivamente de recursos online para a continuidade da educação.
Essa mudança forçada também evidenciou um processo tratado por regulação pública no Brasil. Em 2014, o Marco Civil da Internet estabeleceu a “obrigação de educar” para uma internet “como ferramenta para o exercício da cidadania”. O artigo 29 prevê o controle parental sobre o conteúdo exposto a filhos menores. A Lei Geral de Proteção aos Dados Pessoais estabelece que “o tratamento de dados pessoais de crianças e de adolescentes deverá ser realizado em seu melhor interesse” e impõe o consentimento “específico e em destaque” por um dos pais ou responsáveis para este tratamento. Esses dispositivos regulam diretamente as atividades que estão em curso na educação mediada por tecnologias.
A educação desenvolve-se há muitos séculos com a mediação docente na escolha dos livros didáticos, na metodologia de ensino e nas práticas de trabalho de conteúdos com estudantes. A Sociedade, através do Estado, também provê regulação como Base Nacional Comum Curricular e toda sorte de formalização do sistema educacional. Tudo isso demonstra que educar é um assunto público e social. Entretanto, com a entrada de grandes plataformas na educação, ela agora tem conteúdos, métodos e técnicas fornecidos por entidades que não estão sujeitas ao escrutínio público, muitas vezes sediadas fora do país. Na prática, nossa sociedade está vivendo um período em que perdeu a capacidade de decidir os aspectos da própria educação.
Embora a LGPDP preocupe-se com a localização em território nacional dos dados, a arquitetura atual dos sistemas não estabelece uma fronteira clara entre o que é “dado” e o que é “algoritmo”: ambos estão fundidos em novas metodologias de programação em inteligência artificial como o Deep Learning. Nessa forma de programação, o programa em si tem pouco valor sem os dados que permitem o seu refinamento constante. E uma vez que o programa usa os dados dos usuários para se auto aprimorar, ele pode descartar os dados rapidamente. Portanto, muitas das proteções que temos são obsoletas: o uso de dados pessoais na educação permanece uma perigosa caixa preta que precisa ser aberta pela sociedade.
Embora diversas soluções técnicas devam ser discutidas e sejam necessárias, há aspectos contratuais que gestores públicos devem observar desde já. Se desejamos transparência de dados e sistemas, precisamos iniciar pela transparência de contratos entre poder público e plataformas de tecnologia. Um “truque” comum que empresas de tecnologia usam é oferecer plataformas de educação “grátis” para governos. Sob o manto da gratuidade, muitas parcerias entre empresas e redes públicas são celebradas sem grande rigor. Mas como não existe almoço grátis, esses serviços têm custos escondidos ou lucros indiretos (como o acesso aos dados dos alunos). É fundamental que os termos de parceria sejam celebrados somente após consulta pública amplamente divulgada, seguindo toda a legislação referente a contratações do poder público.
A segunda ação que está prontamente à mão das autoridades públicas é o acompanhamento da execução dos contratos e termos vigentes. Há controle social sobre o uso de recursos do FUNDEB, dos programas de livros didáticos e de praticamente cada aspecto da educação. Da mesma forma, governos, Tribunais de Contas, Conselhos Tutelares, observatórios sociais e as universidades devem colaborar para constituir grupos de acompanhamento, fiscalização e gestão de contratos com plataformas de tecnologia.
Uma terceira ação é a organização das entidades de representação docente para a indicação de um membro na Autoridade Nacional de Dados. A ANP deve ter capacidade técnica de orientar os procedimentos e ações previstas na LGPDP, portanto o setor educacional deve ter voz e representação neste órgão.
Finalmente, é preciso reconhecer que o debate atual não é sobre uso de tecnologia na educação. É difícil identificar um campo de ação social que não esteja mediado por tecnologias e dados na atualidade. Assim, cabe aos educadores, pais e autoridades zelar pelo bem-estar de crianças e jovens que fazem uso intenso de plataformas e dispositivos que coletam seus dados. Assim o fazendo, mais do que cumprindo a obrigação de educar, a sociedade estará fornecendo o direito à educação contemporânea e integral para uma geração que está sendo moldada pela interação com tecnologias e dados.
Rodrigo Barbosa e Silva é PhD em Tecnologia pela UTFPR e Pós-doutor em Stanford. Pesquisador na área de inteligência artificial, desenvolve pesquisa em privacidade de dados na Educação no TLTL, Columbia University. Empreendedor, desenvolve sistemas de robótica educacional, software para transações financeiras e comerciais, micro serviços, APIs, banco de dados, e big data. Promove cursos, capacitações, treinamentos, palestras e aulas sobre robótica educacional, empreendedorismo e políticas públicas. É autor de análises de políticas públicas em inovação, educação e tecnologia e desenvolvimento econômico a partir do ambiente universitário público. Com professores de Guarapuava, Pato Branco, Curitiba e Cidade do Panamá, está fundando o primeiro Instituto para Estudo de Aspectos Éticos e Sociais da Inteligência Artificial do Brasil.