Especialistas defendem que exames de larga escala precisam se adaptar ao novo formato do ensino médio, que agora busca desenvolver competências globais
A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) está mudando a maneira como se ensina (e se aprende) nas escolas de todo o país. Mas o impacto da Base não termina aí: ela também afeta as avaliações – tanto aquelas que o professor realiza na escola, quanto as de larga escala, que geram subsídios para as políticas educacionais. Afinal, tão importante quanto o que acontece dentro da sala de aula, é saber o quanto e como as crianças e adolescentes estão aprendendo.
Não bastasse esse cenário, que envolve uma série de adaptações, as 52 semanas de escolas fechadas por causa da pandemia da covid-19 resultaram em questões ligadas ao processo de aprendizagem que começam a ser identificadas e debatidas pelos professores com a retomada presencial.
“Por causa da pandemia, a diferença entre o que o aluno sabe e o que ele deveria estar desenvolvendo está grande. Então, a avaliação diagnóstica ganha muita relevância”, analisa a educadora Lilian Marciano, que atua como assessora educacional do colégio Nossa Senhora das Graças, em São Paulo.
Na visão dela, são avaliações que vão permitir que os professores olhem “para aquilo que devem fazer”, ou seja, centrar as aulas e atividades naquilo que o estudante precisa aprender. “Ensino e avaliação devem estar um a serviço do outro”, diz.
O Novo Ensino Médio
O desafio de avaliar o que o estudante precisa aprender, depois de tanto tempo no ensino remoto, acentua-se porque a BNCC propõe um novo modo de organizar as aulas e atividades, com o objetivo de desenvolver competências e habilidades que vão muito além da assimilação dos conteúdos acadêmicos. A intenção é oferecer uma formação integral: assim, aspectos como a capacidade de resolução de problemas, saber trabalhar em grupo e colaborar ou ser capaz de lidar com os próprios sentimentos, entre outros, têm um peso importante.
Além disso, em 2022, o Novo Ensino Médio chega a escolas de todo o país com um currículo orientado pela BNCC, promovendo mudanças ainda mais profundas do que nas etapas que o antecedem: o secundário foi dividido em um núcleo de formação comum, pautado pela Base, e em um núcleo flexível, composto de itinerários formativos optativos, associados às quatro áreas do conhecimento (Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas) e à educação profissional.
Dentro de cada itinerário são inúmeras os percursos que os estudantes podem fazer, dependendo do que é ofertado na sua escola. Existe até a possibilidade de itinerários integrados.
Nesse cenário, ganha força uma pergunta: o que e como avaliar? Em especial, como adequar o Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica) e o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), que avalia o desempenho individual do estudante e que se tornou o principal meio de acesso ao ensino superior público.Com as mudanças nos currículos é preciso remodelar as avaliações. Mas isso poderia ter sido pensado desde a largada da BNCC
“Com as mudanças nos currículos é preciso remodelar as avaliações. Mas isso poderia ter sido pensado desde a largada da BNCC”, comenta Djana Contier, coordenadora de Desenvolvimento Integral do Instituto Unibanco.
No caso do Enem, existe um tempo hábil para alinhá-lo ao novo currículo, já que a implementação do Novo Ensino Médio só estará concluída em 2024 – ano em que está prevista a aplicação do exame no novo formato pela primeira vez. “Mas se já soubéssemos como o Novo Enem será, ele poderia funcionar como um norte para os sistemas de ensino, em conjunto com os currículos”, analisa Djana.
Atualmente, o Saeb e o Enem estão em processo de revisão, sendo o segundo em fase mais avançada. O CNE (Conselho Nacional de Educação) encerrou uma consulta pública em 26 de novembro para coletar recomendações para o parecer sobre o Novo Enem, que está em fase de elaboração.Crédito: Eder Chiodetto/Instituto Unibanco
Propostas para o Novo Enem
O parecer do CNE sinaliza um caminho possível para as avaliações a fim de se alinharem com o novo formato do currículo.
Segundo a relatora do parecer sobre o Novo Enem e presidente do CNE, Maria Helena Guimarães de Castro, as adequações precisam ser feitas sobretudo em relação às matrizes de avaliação, já que os novos currículos incorporaram competências e habilidades que antes não eram avaliadas.
Por isso, a proposta do CNE é a de um Enem em duas fases, sendo a primeira uma prova comum e obrigatória, mas não eliminatória, para todos os inscritos. A segunda será composta por provas específicas em quatro áreas – Matemática e Engenharia, Biologia, Ciências Sociais Aplicadas e Humanidades, Linguagem e Artes. A ideia é que o candidato escolha a área mais próxima do itinerário que frequentou no ensino médio ou com o curso em que pretende ingressar.
“O Novo Enem vai manter o propósito, que é selecionar candidatos para ingressar no ensino superior. O que muda é o escopo da prova”, detalha Maria Helena. Nesse sentido, se o Enem assumir os contornos previstos no parecer em discussão no CNE, ele será mais parecido com a edição de 1998, quando foi criado, do que com a prova atual, segundo a presidente do CNE.
Naquela época, o Enem tinha uma ênfase na avaliação das habilidades e competências desenvolvidas ao longo da educação básica, por meio de questões multidisciplinares para verificar a capacidade de argumentação, de solucionar problemas, além do raciocínio lógico e crítico dos alunos. Depois de 2009, quando o Enem ganhou contornos de um vestibular nacional, a prova incorporou o conteúdo programático dos processos seletivos das instituições de ensino superior.
Um desafio, no entanto, é construir um instrumento capaz de mensurar a parte flexível do currículo e, ao mesmo tempo, tenha representatividade nacional, sinaliza Nilma Fontanive, coordenadora do Centro de Avaliação da Fundação Cesgranrio. Tomando como referência o Saeb, que avalia com base em um núcleo comum a todo o país de disciplinas, ela analisa que não seria possível avaliar os itinerários formativos do Novo Ensino Médio.Se não houver um núcleo comum de disciplinas, deixa de ser uma avaliação nacional
“Se não houver um núcleo comum de disciplinas, deixa de ser uma avaliação nacional”, comenta. “Uma coisa são as avaliações realizadas com o objetivo de fazer um diagnóstico. Outra coisa é a certificação profissional”, aprofunda a coordenadora da Cesgranrio. “Não existe, nem no Brasil, nem no mundo, uma matriz de avaliação para os itinerários formativos. O que existe são provas de certificação.”
Este ponto de vista, porém, não é consensual. Djana Contier considera “difícil” o Enem não incluir algum tipo de avaliação dos itinerários formativos, já que eles fazem parte do currículo. “Se o ensino está estruturado dessa forma, a avaliação tem que responder a ela”, afirma, lembrando que já existem vestibulares que caminham nessa direção, ao realizarem provas específicas para determinados percursos profissionais.
Medindo habilidades complexas
Outro desafio desencadeado pela BNCC no campo das avaliações é o de medir habilidades que não dizem respeito estritamente ao desenvolvimento cognitivo.
Tanto o Saeb quanto o Enem, guardadas as especificidades de cada um, são avaliações que medem o que os alunos aprenderam sobre um determinado assunto, sua capacidade de interpretar ou de estabelecer relações, utilizando, geralmente, testes de múltipla escolha – o que acaba impondo uma limitação.No formato adotado pelas avaliações hoje, baseado em questões fechadas, é difícil medir habilidades mais complexas
“No formato adotado pelas avaliações hoje, baseado em questões fechadas, é difícil medir habilidades mais complexas. É necessária uma outra forma para captar, por exemplo, as estratégias que um estudante usa para solucionar um problema”, explica Djana.
Nesse sentido, o Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) pode ser tomado como referência. Realizado pela primeira vez em 2000, o exame promovido pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) avalia o conhecimento de uma amostra de estudantes na faixa de 15 anos em leitura, matemática e ciências, intercalando-as a cada edição do exame.
Desde 2012, o Pisa tem olhado para o domínio da inovação, avaliando competências como resolução de problemas, pensamento criativo e as chamadas competências globais (capacidade de valorizar outras culturas e de lidar com questões de alcance mundial, como a sustentabilidade). Essas avaliações são realizadas em paralelo à prova das áreas do conhecimento, por meio de testes específicos.
O Pisa também adota um tipo de questão que favorece a medida das habilidades complexas: ao invés de solicitar que o estudante escolha a alternativa correta, são feitas perguntas para que ele explique ou discorra sobre um assunto. Por isso, esse tipo de prova dá um passo além em relação ao modelo que prevalece no Brasil.
No entanto, a elaboração das provas sobre as habilidades complexas exige tempo e aprofundamento com especialistas em cada área. “É um processo que leva tempo e exige aprofundamento”, conclui Nilma Fontanive.