Educação híbrida e outras miragens do ensino brasileiro

Educação híbrida e outras miragens do ensino brasileiro

O ‘digital’ nem sempre aumenta a qualidade e tampouco é sinônimo de economia de recursos, exigindo investimentos contínuos em infraestruturaA necessidade de isolamento social durante a pandemia trouxe para a educação básica uma realidade já vivida em parte do ensino superior: a educação remota. Esse uso emergencial de tecnologias remotas inspirou a popularização do termo “educação híbrida” que, entretanto, veio sem discussões precisas sobre o seu significado, implementação, infraestrutura necessária e muito menos evidências sobre a sua eficácia.

Tecnologias digitais na educação são, hoje, indispensáveis. Mas está na hora de pensarmos além de aulas online ou em vídeo como se fossem grandes inovações. Não são, e não vão, em um passe de mágica, resolver nossos problemas educacionais. Temos questões históricas de equidade no acesso, permanência e oportunidades – sem falar na pobreza, fome e violência presente nas comunidades escolares. Nossas escolas, estranguladas pela falta de recursos, abusam da aula expositiva e do livro didático tradicional. Poucas redes públicas conseguem garantir os mesmos recursos e oportunidades para todas as crianças. Nesse contexto de profunda desigualdade, a educação híbrida pode ser um fator de aprofundamento de diferenças, principalmente para famílias sem computadores, internet ou condições de estudo em casa. E mesmo implementações rudimentares — como as aulas em vídeo — são um desafio para muitas crianças e adolescentes que se limitam ao acesso por celulares sem conectividade confiável.

Implementações emergenciais de aulas online foram necessárias. É preciso reconhecer o incrível esforço de docentes durante a pandemia na produção de conteúdo, muitas vezes sem apoio. Porém, não podemos achar que as políticas improvisadas e precárias da pandemia devem agora ser perenizadas. E, além disso, acreditar que o futuro da tecnologia educacional é somente a “aula online” é ignorar o seu potencial como vetor de transformação. Para fazer com que tecnologias mudem a educação, em vez de uma maquiagem digital, será preciso debater seriamente – e com o apoio da ciência – como ir além da digitalização da aula tradicional.

Esse é um debate incômodo. Em muitas redes de ensino superior, em nome da chamada “transformação digital”, a tecnologia tem sido usada para cortar custos e qualidade. E muitos querem agora levar essa “precarização digital” para a educação básica. Será uma catástrofe, e para que isso não ocorra precisamos lembrar que o “digital” nem sempre aumenta a qualidade. A melhora virá de ações conjuntas e coordenadas, começando por investimentos contínuos em infraestrutura. O acesso a hardware, software e conectividade é desigual e é papel do Estado equalizá-lo. Essa demanda estrutural derruba a crença de que o ensino híbrido torna a educação barata –– pelo contrário, ela será mais cara.

A educação tem o potencial de ser transformada – e transformar – com o apoio de tecnologias. Isso exige uma revisão de qual perspectiva se adota nessa relação entre a aprendizagem e as novas tecnologias

Em segundo lugar, a educação híbrida requer uma gestão mais sofisticada. O cenário emergencial da pandemia forçou docentes a fazerem o trabalho de equipes técnicas e administrativas, mas isso não pode ser normalizado. Docentes devem focar no ensino, mas hoje acumulam as funções de gerente de informática, designer de cursos online e helpdeskdo Zoom– – sem remuneração extra. Deve ser responsabilidade das secretarias e do MEC a garantia da evolução, segurança e efetividade de novas plataformas. É necessário que os governos estimulem profissionais com conhecimento em tecnologias e educação a assumirem postos chaves nas secretarias, pois o papel decisório sobre quais recursos, plataformas e equipamentos será crucial nos próximos ciclos governamentais.

A adoção de tecnologias na educação passa ainda por questões éticas. A escola terá de tratar da segurança e tratamento ético de dados pessoais, vieses e preconceitos integrados a sistemas computacionais, novos tipos de supervisão e controle e demanda de profissionais altamente especializados nesses temas. Tornou-se uma prática comum, por exemplo, a implementação de sistemas de ensino gratuitos na superfície, mas que se apossam de dados de estudantes e docentes sem que as consequências sejam discutidas de forma inteligível ou transparente.

A educação tem o potencial de ser transformada – e transformar – com o apoio de tecnologias. Isso exige uma revisão de qual perspectiva se adota nessa relação entre a aprendizagem e as novas tecnologias. Alunos e alunas devem ser produtores e não só consumidores de tecnologias, com engajamento em formas de educar mais sofisticadas do que a mera transmissão unidirecional de conteúdo. Em alguns países, a educação híbrida foca menos em aulas online e mais nas novas oportunidades que diferentes contextos como a escola, a casa, os museus e outros oferecem (por exemplo, o projeto Make It Open da União Europeia). Há ambientes de aprendizagem que integram laboratórios de ciência a tecnologias computacionais como linguagens de programação, robótica e recursos makerpara oferecer experiências mais relevantes e inovadoras. Bibliotecas escolares se reestruturam para oferecer, além do acesso a livros, conexão a acervos culturais, materiais de criação audiovisuais e equipamentos de fabricação digital, tornando-se também espaços para absorção, difusão e criação com esses recursos. Um debate sério sobre educação híbrida no Brasil deve considerar ideias inovadoras como essas, em vez de propor “mais do mesmo”, mas agora precarizado em uma telinha de celular.

Das experiências internacionais e dos exemplos nacionais, verificamos que planejamento constante, estratégias públicas intersetoriais, formação docente inicial e continuada de qualidade e estrutura física foram diferenciais para sistemas públicos que conseguiram empregar tecnologias como uma forma de atenuar períodos fora das escolas. Para os próximos ciclos governamentais, federal e estaduais que se iniciarão em 2023, a pandemia deixa lições que devem ser aprendidas pelos gestores: educação não é lugar para improvisos, docentes são aliados no desenho de soluções e planejamento prévio é necessário tanto para o cotidiano escolar quanto para momentos de emergência.Renato Russo é doutorando no Teachers College, Columbia University (EUA), e pesquisador no TLTL (Transformative Learning Technologies Lab) (tltlab.org).

Rodrigo Barbosa e Silva é cientista da computação, PhD em Tecnologia e Sociedade (UTFPR) com pós-doutorado em Stanford. Docente de pós-graduação (PUCRS e Unicentro/PR), pesquisador em políticas públicas em tecnologias no TLTL (Transformative Learning Technologies Lab) (tltlab.org).

Mariana Lederman Edelstein é mestranda no Teachers College, Columbia University (EUA), pedagoga e psicopedagoga pelo Instituto Singularidades, e pesquisadora no TLTL (Transformative Learning Technologies Lab) (tltlab.org).

Fabio Campos é doutorando em ciências da aprendizagem na Universidade de Nova York (EUA) e pesquisador residente no TLTL (Transformative Learning Technologies Lab) (tltlab.org).

Paulo Blikstein é professor na Escola de Educação e professor afiliado no Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Columbia (EUA), diretor do TLTL (Transformative Learning Technologies Lab) (tltlab.org) e do Lemann Center for Brazilian Studies.

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