Como a pandemia influenciou na relação entre escola e família
Matéria publicada na Crescer em 01/12/2022 – Nos últimos dois anos, essa relação ficou um tanto confusa. Mas sabemos que a parceria é fundamental para o desenvolvimento e a aprendizagem das crianças. Venha entender por quê
Por Fernanda Montano
Cuidar de uma criança é tarefa coletiva e inclui o educar – não só dentro de casa, mas fora também. Porém, não basta os pais matricularem o filho na escola e acreditar que a responsabilidade pela educação foi transferida. Vai muito além disso. Aquele pensamento antigo “a família educa e a escola ensina” não faz sentido. “Hoje, vivemos uma conjuntura histórica e social que não sustenta essa divisão tão específica de funções. Não por acaso, atualmente se fala em uma escolarização integral, o que não significa apenas que as crianças e os jovens permaneçam na escola por mais tempo, mas que passe a ser papel da escola incidir sobre questões que antes não lhe diziam respeito, como as chamadas competências socioemocionais”, aponta a psicóloga Marta Picchioni, professora do curso de extensão “Família e Escola: a tarefa educativa no tempo presente”, do Instituto Singularidades, de São Paulo (SP).
E observamos mesmo esse movimento. Afinal, se habilidades como criatividade, pensamento crítico e inteligência emocional também vão importar para o mercado de trabalho no futuro, não dá para deixar isso de fora do ambiente escolar. É claro que as relações afetivas, o convívio com as diferenças e as relações de conflito sempre ocorreram na escola, mas não apareciam como um componente curricular oficial, o que acontece agora em diversas instituições.
Mas ensinar sobre respeito, emoções e afins não era papel da família? Sim! Mas por que não pode ser de ambas? “O que vemos é uma dificuldade maior de delimitarmos os papéis de família e escola de maneira tão clara, de modo que a tarefa educativa passa a ser entendida como responsabilidade de toda uma geração em relação à outra, ou seja: de adultos em relação a crianças e jovens em formação”, completa Marta Picchioni. Apesar de exigir empenho dos dois lados, isso é positivo, porque convoca todos a se envolver, a pensar enquanto sociedade para educar os pequenos.
Realidade potencializada
Mas esse compromisso mútuo de educar uma criança não pode ser confundido com “terra de ninguém”. Essa união deve ter limites claros de até onde cada lado pode ir.
O conflito entre famílias e escola sempre existiu, mas de alguma forma ficava contido pela separação física entre elas. E o que aconteceu com a chegada da pandemia? De um lado, a escola entrou, literalmente, dentro dos lares, deixando claro o quanto o ambiente presencial e tudo o que ele representa é primordial para o desenvolvimento das crianças. Do outro, pais e mães que não sabiam bem como lidar com aquela sala de aula em casa (#quemlembra?).
Para muitas famílias, foi a chance de participar mais da vida escolar do filho, o que, sem dúvida, é benéfico. “Meu filho foi alfabetizado nas aulas online. Não foi fácil, mas eu pude entender muito melhor como a escola ensina, ver como incentivam a autonomia dele. Se não fosse a parceria entre nós, famílias, e a escola, nem consigo imaginar como teria sido essa experiência”, diz a empresária Renata Vilar, 41 anos, mãe de Theo, 8 anos, Breno, 5, e grávida de Lucca.
Mas houve também aqueles pais e mães que tanto assumiram o papel do professor quanto tentaram corresponder aos seus próprios ideais do que é ser um bom aluno, sentindo-se eles próprios avaliados pelo desempenho escolar de seus filhos e, na outra ponta, julgando o trabalho e a aula dada pelos professores.
Vivemos, então, um tempo de ajustes, a partir de um encontro que nos convoca a pensar e repensar o lugar dessa parceria, bem como retomar a confiança na escola e na criança, permitindo que essa relação se fortaleça fora de casa.
Fato é que agora estamos encerrando o segundo semestre do ano letivo, depois da retomada presencial no início deste ano. E esse recomeço já trouxe alguns indícios de mudanças. “No retorno, esse desafio continua. Temos visto nas crianças e adolescentes sinais de medo por não pertencer mais ao grupo, ansiedade por estar com muita gente, mais comparações entre as meninas adolescentes…”, afirma a psicopedagoga e psicanalista Mônica Pessanha, de São Paulo (SP), colunista da CRESCER. Ela completa: “É considerável o número de crianças que aparecem no consultório tomadas pela angústia da separação. Outro destaque desses tempos, principalmente para os pequenos em processo de alfabetização ou de consolidação dela, foi a significativa defasagem.” Não é pouca coisa.
A escola precisa, então, continuar a boa comunicação com os pais até mesmo como parte da estratégia de ajudar as crianças a recuperarem algo que foi deixado para trás em termos de aprendizado. Na hora de cobrar a criança, ambos – escola e família – não poderão ignorar eventuais efeitos que a pandemia nos deixou”, defende Mônica.
O segredo é confiar
“O papel da escola está em transição: ela deveria se aproximar do século 21, mas algumas adoram o século 16. O conceito de autoridade anda em crise e precisa ser construído em cada grupo. Só com a relação de confiança entre família e escola se constrói essa autoridade de cada um. Mas isso leva tempo, a família precisa confiar na escola e vice-versa, para a educação acontecer”, opina a psicóloga e consultora educacional Rosely Sayão, autora dos livros Em Defesa da Escola (Papirus Editora) e Educação Sem blá-blá-blá (Três Estrelas).
Mas, então, qual é a atribuição de cada uma? “A escola e a família têm funções complementares e que se sobrepõem, muitas vezes. À escola cabe a educação mais formal e num espaço coletivo, de interação entre todos os sujeitos ali presentes – alunos, professores, funcionários. Já à família cabe a educação mais individualizada da criança, dentro de seus princípios e valores”, diz Lígia Mori, diretora pedagógica da Escola Nossa Senhora das Graças, em São Paulo (SP).
Ou seja, quando os pais têm um bom relacionamento com a instituição, se mostrando mais disponíveis para entender o projeto pedagógico e ativos no processo educativo, todos se beneficiam. Ao mesmo tempo, quando a escola consegue dar direções claras sobre o que é esperado dos pais, ouvindo seus feedbacks e pensando em como mostrar o melhor caminho para eles, consegue-se aliviar o peso que as famílias carregam. “O aprendizado ocorre a todo momento. Não importa se a criança está na escola, em casa ou andando na rua. Tudo o que ela vê, escuta ou sente pode formar novas conexões neurais e virar aprendizado – não depende só do professor, da sala de aula ou da instituição para que ele aconteça”, afirma o professor Bruno Piva, CEO e fundador da Piva Consultoria Educacional Integrada, de São Paulo (SP). “Quando percebemos que todos somos responsáveis, o processo fica mais leve e natural para a instituição, para os professores e para os pais. Além disso, os alunos e seu processo de aprendizagem são os maiores vencedores”, completa Piva.
Isso reflete, obviamente, em como a criança aprende. Um estudo do departamento de Psicologia da Universidade Autônoma do Chile, feito com 498 famílias, mostrou que crianças cujos pais têm baixo envolvimento com a escola possuem menor desempenho acadêmico.
O acompanhamento dos pais no processo de aprendizado do filho na escola faz a diferença para a criança — Foto: GettyImagesSentir a escola sempre acessível para uma conversa foi fundamental para não surtar no período de aulas online – e continua sendo agora, na volta do presencial. Me sinto ouvida e respeitada e isso impacta positivamente na evolução de aprendizado dos meus filhos.”— Laís Goes, advogada, 34 anos, mãe de Bruno, 8 anos, e Pedro, 5
No dia a dia
O mesmo estudo reforça que esse envolvimento dos pais com a escola não se dá apenas na hora da lição de casa. Então, como fazer isso na rotina sem que um invada o espaço do outro? O primeiro passo é entender que essa cooperação é fundamental para que a criança se sinta segura, percebendo que todos estão trabalhando em conjunto para um mesmo fim – e que não existe uma relação de disputa ou desrespeito, mas sim de confiança. “Não são alunos ou filhos – são pessoas. Essas pessoas têm histórias que podem ser do conhecimento de todos (escola e família), levando em conta se esse fato pode interferir no processo de aprendizagem, que é o papel principal da escola. Ou seja, é preciso considerar a criança como um ser que tem uma vida dentro e fora da escola para criar estratégias de ensino que funcionem para ela”, diz Lígia Mori.
A escola deve ser um espaço de escuta e acolhimento e a família pode, sim, procurá-la sempre que julgar necessário. Porém, deve haver limites bem demarcados. “É importante os dois lados se falarem, mas cada um deles precisa observar seu espaço de atuação. Caso contrário, teremos uma inversão de papéis: a escola querendo intervir em questões que devem ser tratadas no seio familiar e vice-versa”, explica o pedagogo e psicanalista Flávio Azeredo, de São Paulo (SP).
No caso da analista de sistemas Mariana Cury, 41 anos, mãe de Theo, 8, e de Leo, 3, a sinergia foi perfeita e para além das questões pedagógicas: “Minha mãe passou por um tratamento de câncer e isso obviamente abalou toda a família. O apoio da escola não foi importante somente para os meus filhos, mas também para todos nós, eu, meu marido e minha mãe. A primeira vez que ela foi comigo buscar meu mais novo na escola após o tratamento foi superemocionante, todos da escola vinham abraçá-la”, conta.
Atitude proativa
Outro passo para construir uma relação saudável é ter uma postura ativa – o que quer dizer não ficar só esperando a reunião de pais para ambos trocarem informações. Está em dúvida sobre algo do aprendizado do seu filho? Gostaria de fazer uma sugestão de melhoria do espaço? Quer comunicar algo importante de mudança na rotina da família? Procure o estabelecimento de ensino! Em contrapartida, a instituição deve manter o canal de comunicação sempre aberto, mas com clareza sobre esses procedimentos, como quem procurar e de que forma. “Ela precisa sinalizar para os pais que é desnecessário esperar a reunião para tratar do processo de aprendizado do filho. Mas, ao fazê-lo, é bom explicar quais são as condições. Há pais que vão querer agendar uma reunião para ontem. É possível? A coordenação dá conta? Não adianta idealizarmos uma relação que é diferente para uma organização que tem 200 alunos e outra que possui 3 mil. Só vai gerar frustração. Ao fim, o que deveria ser uma experiência positiva se transforma em transtorno”, pondera a psicanalista Mônica Pessanha.“Minha experiência com a escola foi de maravilhosa – quando não havia situações para serem tratadas – a frustrante – quando, mesmo com muitas tentativas, não encontrei solução no tratamento de conflitos. Percebi que havia um interesse constante de apaziguar, mas não de resolver. Mudei de instituição e tive uma boa surpresa. Uma acolhida muito gentil e carinhosa não só com as crianças, mas com toda a família.”— Aline Venditti, empresária, 38 anos, mãe de Marie, 11 anos, e Benjamin, 7
Uma parceria bem-sucedida, em qualquer área da vida, só funciona se as partes interessadas realmente se dedicarem: é preciso ter espírito colaborativo, empatia, vontade de fazer junto. Quando o assunto é a educação de um filho, trabalhar em sintonia inclui um desafio ainda maior – ajudar a formar um ser humano que poderá fazer a diferença no mundo. Quanto mais afinadas família e escola estiverem, a chance de todos nós termos um futuro melhor aumenta. Já pensou nisso?