Senado pode estancar a destruição da educação pública brasileira
Coluna publicada pela Folha de SP em 02/06 – É cruel reduzir receitas em um momento de aumento da demanda por esses serviços
Os graves desafios enfrentados pela educação brasileira, por ação ou omissão do governo federal, vêm ganhando contornos ainda mais dramáticos. Os últimos capítulos deste filme B de terror se deram mais recentemente, com a aprovação na Câmara dos Deputados das leis que legalizam o ensino domiciliar e da lei que reduz a arrecadação de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) sobre energia e combustíveis pelos estados.
O Brasil já não vinha bem na educação, como demonstram os indicadores pré-pandemia. Naquele momento, ainda atendíamos menos de 40% das crianças em idade de creche nas escolas, a meta de universalização da pré-escola, prevista para 2016, estava longe de ser alcançada, apenas metade dos estudantes completava os nove anos do ensino fundamental sem reprovar ou evadir da escola e só 65% dos jovens de 19 anos completava o ensino médio. Entre os que completaram o ensino médio naquele momento, apenas 10% aprenderam o esperado em matemática.
Ainda não temos um painel consolidado da aprendizagem no Brasil, mas os dados iniciais de avaliações promovidas por alguns estados evidenciam a tragédia prevista: os estudantes que não frequentaram a escola por conta da pandemia obtiveram resultados piores em testes padronizados do que seus colegas que frequentaram a escola. O ensino remoto fracassou e da pandemia emergiu uma constatação tão óbvia quanto os maus resultados dos estudantes em avaliações padronizadas: a escola faz diferença. E é exatamente pelo fato de a escola fazer diferença que o Senado deve dizer não aos projetos recém-aprovados na Câmara dos Deputados que promovem a redução das receitas de ICMS e o que permite a adoção da educação domiciliar no Brasil.
O que une os dois projetos, além da aprovação de afogadilho, são a agenda eleitoral do governo federal e um “liberalismo de botequim”, tão em uso neste país que nutre paixão por ideias fora do lugar.
O projeto que prevê a redução do ICMS sobre combustíveis e energia deve promover uma perda de receita aos estados de até R$ 84 bilhões, segundo o Comitê Nacional de Secretários de Fazenda dos Estados e do Distrito Federal. Do lado dos municípios, a perda anual será de cerca de R$ 66 bilhões, de acordo com a Confederação Nacional dos Municípios.
A crise de energia é global e a previsão é de alta pelos próximos meses. Como não há nenhum mecanismo de proteção aos mais pobres, estes pagarão duplamente: pelos efeitos da alta de energia e combustíveis na economia como um todo e pela redução dos serviços públicos, especialmente de saúde e educação, cujos recursos são vinculados à receita de impostos. É cruel reduzir as receitas de saúde e educação em um momento de aumento da demanda por esses serviços.
A receita da educação nos estados é composta principalmente por 25% da arrecadação de ICMS e do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica). No caso dos municípios, a quota parte do ICMS a que têm direito é um componente importante das receitas da educação, ao lado do Fundeb e outros impostos. Como o ICMS representa 60% da composição do Fundeb, a perda de receita será geral, mas ainda mais grave nos estados e municípios mais pobres.
O momento é absolutamente inapropriado para reduzir os recursos da educação. Há um afluxo maior de estudantes oriundos de escolas privadas para escolas públicas —o que amplia a necessidade de investimentos— e os efeitos danosos da pandemia, especialmente a evasão escolar, as questões relacionadas à saúde mental dos estudantes e dos educadores e os desafios de aprendizagem. É hora de buscar os alunos que deixaram a escola —só no ensino médio este número dobrou segundo o Censo Escolar recém divulgado—, criar programas voltados à saúde mental dos estudantes e dos profissionais, de recomposição das aprendizagens e outros. No momento em que a educação mais precisa de recursos está ameaçada de reduzir aquilo que já tem garantido.
A educação domiciliar, como já tive oportunidade de escrever nesta coluna, também é uma medida de componente ideológico-eleitoral. Ela abre a porta para a violação do direito das crianças e adolescentes frequentarem a escola, reduz a possibilidade de se desenvolverem em ambientes diversos e estruturados para promoção das aprendizagens e diminui a proteção social que encontram no ambiente escolar.
Em seu conhecido texto “A crise da Educação”, Hannah Arendt afirma que “a educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele” e que “a educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós”.
Que o Senado brasileiro rejeite as duas proposições e assuma sua responsabilidade com o futuro de milhões de crianças e jovens brasileiros, reafirmando o seu compromisso com a educação pública, já expresso nessa legislatura quando aprovou a lei que ampliou os recursos do Fundeb.